Que pais é este
4 de junho de 2016Boto cor de rosa
4 de junho de 2016Desculpem meus caros alunos, mas me atrasei alguns minutos, porque precisei passar na diretoria. A diretora mandou-me chamar para conversar — disse professora Vera, entrando apressadamente na sala de aula e colocando sobre a mesa algumas cadernetas de chamada, uma caixa de giz e o apagador.
— E o que ela queria, professora? A senhora não vai ser mandada embora da escola não, vai? — indagou Maria, uma meninazinha miúda, sentada na primeira carteira junto à mesa. — Eu gosto muito da senhora.
— Veja só — comentou, com ares de sabedoria, Augusto um aluno que se encontrava ao lado de Maria. — A escola não pode mandar a professora Vera embora, porque ela é concursada, sua boba.
— Concursada?! O que é isto? — quis saber, curiosa, a menina se dirigindo à professora, como se ignorasse a presença do colega.
— Neste tipo de escola, quando queremos dar aulas, fazemos um prova. Aí as pessoas que tiram as melhores notas são contratadas. E os que são contratados desta forma, não podem ser mandados embora — explicou a professora.
— Nunca? — voltou a indagar a aluna.
— Só se fizermos alguma coisa muito errada, acho — explicou a professora com um sorriso.
— E o que seria uma coisa errada? — a menina tornou a perguntar.
— Por exemplo — intrometeu-se Augusto —, fazendo você calar a boca à força para não ficar perguntando besteira.
Todos os alunos riram da observação do colega. Mas logo se calaram, pois Vera tomou outra vez a palavra.
— Silêncio! Augusto, ela não perguntou nenhuma besteira como você disse. Ela tem todo o direito de perguntar o que quiser. Pior são aqueles alunos que nunca perguntam nada. Muitos têm dúvidas sobre alguma coisa, mas se calam. E sabem por que se calam, senhor Augusto?
— Não, professora — respondeu o menino com um sorriso.
— É porque em todas as turmas tem uma pessoa, como você, meu querido e maravilhoso aluno — disse Vera aproximando-se dele e fazendo-lhe um carinho na cabeça.
— Já sei, professora. Em todas as salas tem uma pessoa inteligente e bem informada como eu, não é?
Novamente os risos se espalharam pela sala. Até a professora não resistiu e começou a rir.
— Não, meu caríssimo aluno, meu geniozinho, meu amado discípulo! — declarou a professora ainda rindo e voltando para seu lugar junto à mesa.
— O que é discípulo?! — indagou Maria, desta vez com uma cara espantada, impedindo que Vera continuasse a falar.
— É isto mesmo, professora — falou um outro aluno lá do meio da sala. — O que é esta coisa que a senhora falou? Este tal de diz...
— Não é este tal de diz — interferiu Augusto. — Assim, discípulo fica parecendo até nome de gente.
— E não é? — quis saber outro colega de classe. — Discípulo da Silva Santos, por exemplo. Eu colocaria este nome no meu filho, se tivesse um, claro. Ficaria muito bonito, diferente.
— Diferente, tenho certeza que ficaria, Lucas — comentou a professora.
— Santa ignorância! — disse, quase gritando, Augusto, pondo-se de pé.
— Sente-se! — ordenou Vera ao aluno. — Fiquem todos calados que eu vou explicar o que significa este tal de discípulo como disse o Lucas.
— Eu posso explicar? — pediu Augusto.
— Não!!!! — gritou quase a classe inteira, ao mesmo tempo.
— Meu Deus! Eu só queria ajudar — comentou o mais falante dos alunos da turma.
— Alguém aí, além do Augusto, sabe o que seria um discípulo? – indagou a professora ainda rindo da situação.
— Mas eu sei o que é discípulo. Deixa eu falar, deixa, professora? — insistiu Augusto.
— Vamos dar oportunidade a outro aluno para se manifestar. Se ninguém souber, aí você explica, tá? — pediu Vera com toda a paciência que lhe era peculiar.
— Mas eu sei mesmo, viu!
— Professora, posso perguntar uma coisa? — falou Marta, uma aluna que se encontrava sentada junto à porta de saída da sala.
— Claro, minha querida.
— Se a senhora colocar uma mordaça em Augusto, a senhora pode ser mandada embora da escola? — indagou a menina rindo. — Só assim para ele ficar calado e deixar os outros falarem. Este menino é muito chato.
— Não sei não, mas acho que sim. Isto seria uma violência contra o direito de expressão. Afinal, todos os cidadãos deste país têm o direito de expressar suas idéias.
— Mas ele se expressa muito — falou outra vez Marta, dando risadas. — Assim não tem quem agüente. Ele é muito chato!
— Voltando ao que estávamos fazendo, alguém aí sabe o que é um discípulo? — disse Vera, voltando-se outra vez para a turma toda.
Ninguém arriscou. Silêncio total.
— Está vendo! — comentou Augusto. — Ninguém sabe.
— Ninguém sabe, mas nós não queremos que você diga, não. Queremos que a professora Vera fale, não é pessoal? — indagou Marta.
— Mas eu sei, ora.
— Augusto, se você não se aquietar, eu vou aí e te estrangulo, seu chato! — falou um outro aluno do fundo da sala, gesticulando como se fosse colocar mesmo em prática o que dizia.
— Meu Deus! Uma outra palavra que vai criar problema — comentou Núbia, uma outra aluna a se envolver na conversa.
— De que palavra está falando, meu amor? — quis saber Vera.
— Esta aí: Estrangulo.
— Não, esta é fácil, não é pessoal? — consultou Vera.
— Estrangular é enforcar — veio uma voz de algum lugar da sala.
— Pronto. Pelo menos este problema está resolvido — comentou a professora.
— Já que ninguém sabe o que é discípulo, vamos permitir que nosso colega Augusto nos diga o que é então, certo pessoal? — disse Vera, aproximando do aluno.
— Posso ficar de pé para explicar? — pediu Augusto.
— Nããããão! — voltou a turma a gritar.
— Basta a explicação — adiantou Vera.
— Pois bem — começou Augusto —, discípulo é aquela pessoa que segue as idéias do outro.
— Muito bem — declarou a professora.
— Professora Vera, um aluno pode ser chamado de discípulo, então? — procurou saber alguém.
— Pode — disse Vera, rapidamente, evitando que Augusto fornecesse também aquela informação. — De uma forma geral, discípulos são aprendizes.
— Entendi — comentou Maria, satisfeita com a explicação.
— Muito bem, pessoal — voltou a falar Vera —, o que temos para hoje?
— A entrega das pesquisas sobre lendas brasileiras, professora — informou Marta.
— Muito bem. Cada grupo ficou responsável por uma lenda e são seis ao todo, não é isto?
— Exatamente — disse um outro aluno.
— Bom, agora vamos nos reunir para começar o trabalho.
— Trabalho?! E vamos fazer alguma coisa com estes textos? — procurou saber Tiago.
— Você não pensou que a atividade sobre lendas brasileiras se resumiria a uma simples pesquisa, pensou?
— Para falar a verdade, pensei sim.
— Então você não esteve muito atento às explicações que dei na aula passada. Cada grupo agora vai se reunir e vai recontar as lendas da maneira que achar mais conveniente. Depois, vamos fazer as apresentações. Cada grupo vai escolher também a melhor maneira de apresentá-las para os colegas. Depois, vamos definir qual grupo de todas as turmas vai fazer a apresentação no encerramento do semestre. Por isto, vamos caprichar, hein pessoal.
Um a um, os grupos foram se organizando sentados no chão aqui e acolá pela sala. Imediatamente começaram as discussões de como estruturar o texto de cada equipe e a melhor maneira de levá-los ao resto das turmas. Sem qualquer interferência, Vera ia de grupo em grupo observando a organização dos trabalhos.
Marta, Maria, Augusto e duas outras colegas, Sílvia e Beatriz formavam um dos grupos. Haviam, por sorteio, ficados com a lenda do Saci Pererê.
— Alguém tem uma idéia de como devemos fazer? — procurou saber Marta. — Já pensei muito, mas não tive nenhuma idéia brilhante.
— E você, gênio? — indagou Maria a Augusto.
— Calma, estou pensando — disse o menino de cabeça baixa.
— Ih, acho que daí, desta vez, não vai sair nada — comentou Marta com um sorriso.
— Quando os gênios pensam, o silêncio deve reinar — disse Augusto com um sorriso.
Em torno deles, cada grupo também tentava reconstruir suas histórias da melhor maneira possível. Mas, meia hora após o início das atividades, ninguém ainda tinha tido nenhuma brilhante idéia. Normalmente, este é mesmo um período crítico de qualquer trabalho: conseguir um fio condutor. Se ele aparece, logo a imaginação flui como uma flecha.
— E então? — perguntou Maria depois de alguns instantes.
— Não esperem que só eu tenha idéias. Assim vou gastar todos os meus neurônios.
Novo silêncio imperou entre os componentes do grupo. Faltavam realmente idéias.
— Quanto tempo ainda temos para o final da aula? — indagou alguém.
— Quinze minutos — informou Augusto consultando o relógio.
— Não dá tempo para mais nada — disse Marta.
— Que nada — interferiu Bia. — Minha mãe, uma vez, me falou que grandes decisões na história do mundo foram tomadas em apenas alguns minutos. Às vezes, alguns minutos são suficientes para grandes idéias.
— Então estamos esperando, Bia — brincou Augusto.
Beatriz sempre se destacara na turma por ser uma pessoa de fala precisa, de participação ativa e de um companheirismo invejável. Sempre estava disposta a ajudar, a dar a mão no momento certo. E muitas eram as vezes que trazia grandes contribuições para os trabalhos coletivos.
— É mesmo, Bia, lembra daquela vez que deu a idéia de fazermos o painel sobre preconceito. Tiramos a maior nota de todas as turmas.
— É, mas hoje as coisas não estão muito boas para o meu lado.
— Estou vendo mesmo que você está meio triste. O que está acontecendo?
— É minha mãe.
— O que aconteceu?
— Está doente — disse Bia, cabisbaixa.
— Alguma coisa séria? — procurou saber Augusto, demonstrando preocupação com a colega.
— Não sei. Não entendo destas coisas. Mas quando saí, hoje cedo, ela estava meio triste. Acho que chorou durante a noite, pois estava com os olhos vermelhos.
— Talvez sejam só estas cosias de mulher — comentou Maria.
— Conheço a minha mãe. Ela não é de ficar assim por qualquer coisa, não.
— E então? Como vamos fazer? — indagou Marta achando que realmente, naquele momento, nada de grandioso iria surgir.
— Eu sugiro que cada um pense em alguma coisa em casa, escrevam e, na próxima aula, voltemos a nos reunir. O que acham?
— Realmente acho melhor — concordou Augusto. — Mas eu não vou ter condições de fazer nada, porque vou a uma festa num sítio de um amigo de minha mãe e só volto no domingo à noite.
Já estavam de saída, quando Beatriz parou, voltou-se e disse:
— Tive uma idéia.
— E qual é? — perguntou curiosa Marta, a única colega de classe que ainda estava ao seu lado.
— Não sei se vai dar certo, mas...
— Fale. Se não der certo, deletamos ora, e vamos pensar em outra coisa.
— Que tal um júri simulado?
— E como é isto? Serve para contar a história do Saci?
— Este tipo de atividade serve para qualquer história e acho que ninguém irá pensar nisto. Vamos fazer algo diferente de tudo que vão apresentar. Basta que tenha uma personagem que possa ser julgada culpada ou inocente.
— E como é isto? De onde tirou esta idéia?
— Tenho uma tia que é professora. Ela quem me contou sobre um trabalho que ela fez na escola. Achei muito interessante.
— E como é isto? Ainda temos alguns minutos. Quer falar sobre isto agora?
Em poucas palavras, Beatriz expôs sua idéia e como seria elaborado o trabalho.
— Menina, é fantástica esta sua idéia! Já até me vejo como advogada de defesa. Você será perfeita no papel da advogada de acusação.
— A idéia, como te falei, não é minha. Vou falar com minha tia para ela nos ajudar no que for preciso.
— Não importa de quem seja a idéia, o que importa é que é muito boa — disse, Marta, empolgada com o caminho que as coisas estavam tomando. — Vamos arrasar, minha amiga.
— Faremos, então, o julgamento do Saci — disse Bia, sorrindo ainda abraçada à colega.
— E quem fará o papel do Saci? — perguntou Marta.
— O Augusto, claro — declarou Beatriz.
— Mas o Augusto é branco.
— Nós vamos pintá-lo de preto, ora. É o castigo dele por ser muito chato e não querer ajudar na produção do texto. Viu que folgado. Disse que não podia ajudar porque iria passar o final de semana em um sítio. Vai se divertir e nós trabalharmos. Ele que espere! — falou Bia, em tom teatral.
— Vamos mesmo pintá-lo de negro?!
— Por que não? O que tem isto de mais?
— Bem que o Ângelo poderia estar em nosso grupo, né? Ele é maravilhoso! Fala tão bem e já é negro — comentou Marta, avistando o referido colega de classe junto ao balcão da cantina.
— Não precisamos do talento todo do Ângelo para um papel destes. O réu, normalmente, não fala nada mesmo. Qualquer idiota pode fazer isto.
— O Augusto vai morrer de raiva — comentou Maria que já, àquela hora, se juntara às outras duas colegas.
— Por quê? — fez-se de desentendida Beatriz.
— Se ele não puder falar durante a peça ele vai morrer. Ficar ali, sentado, sem dizer nada para ele vai ser a morte. Não vai topar de jeito nenhum — voltou a falar Maria.
— Vai ter que topar, sim. Ele é o único homem da equipe. Está decidido — determinou Marta.
— Se ele criar muito caso, vamos dar umas falinhas para ele, poucas, claro — sugeriu Bia, sorrindo.
— Para falar a verdade, achava que este papel deveria ficar com a Sílvia — ironizou Marta.
— Por que ela?
— Ela é que é boa para fazer este tipo de papel. Se não precisa falar nada, é com ela mesma.
— Que nada! É até bom que ela faça um outro papel. De algum personagem que precise falar. Assim ela vai soltando a língua.
— Não sei, não. Tem já uns três dias que não ouço a sua voz em sala — falou Marta.
— Vamos até fazer um favor para ela. Vamos colocá-la como testemunha, então — falou Beatriz decidida.
— Por quê?
— Algumas testemunhas não precisam falar muito. É bom que ela faça alguma coisa que precise falar. Com o tempo, ela vai se acostumando.
— É mesmo! Ouvi dizer que tem muitos atores que eram tímidos demais e entraram para o teatro exatamente por isto. Hoje são astros da televisão e do cinema.
— Então, vamos fazer um favor a ela — comentou Bia se dirigindo para a rua.
No dia seguinte, uma terça-feira, a aula de Português era no primeiro horário. Quando chegaram, Vera já aguardava os alunos, sentada à mesa.
Depois de todos sentados, depois da chamada feita, uma pergunta:
— E então, meus caros, alguma idéia brilhante para contar a lenda pesquisada?
Apenas um dos grupos não havia ainda resolvido aquela questão fundamental ao trabalho. Todos os demais já estavam prontos pra começar as atividades.
Observando, grupo por grupo, a professora Vera foi certificando-se de que tudo estava sendo encaminhado da melhor maneira possível. Aqui e ali dava uma idéia, ouvia os alunos e apresentava soluções para pequenos problemas que, normalmente, surgem em uma atividade como aquela. Dos cinco grupos, um iria apresentar a lenda em forma de dança, dois em forma de encenação teatral, um outro em forma de musical e o de nossos personagens em forma de júri simulado. Uma novidade!
Sentados, agora no pátio da escola, os alunos começaram a discussão a respeito da divisão de papéis.
— E sua mãe, Bia? — indagou Marta, percebendo a colega ainda triste e pensativa.
— Tudo bem — respondeu a menina sem erguer sequer a cabeça.
— Bem não está, né? Você não é assim. Está sempre sorridente.
— É sua mãe, não é? — perguntou também Marta.
— Não está nada bem.
— Descobriu o que é? Meu pai é médico. Talvez ele possa ajudar — adiantou Augusto.
— Obrigada, mas ela vai, de novo, a um médico, agora pela manhã. Esperem aqui que preciso ir ao banheiro — disse Bia se afastando, apressadamente. — Já volto. Fiz algumas anotações em meu caderno e quero mostrar para vocês. Não demoro.
Os demais colegas continuaram conversando sobre outros assuntos enquanto aguardavam pelo regresso da colega.
— E a prova de matemática, hein? — comentou Maria.
— Nem me fale. Desta vez o professor Rodolfo levou todo mundo para o buraco — disse Marta.
— Bem que ele falou que era melhor nós estudarmos mesmo — afirmou Augusto.
— E você, Sílvia, como foi? — indagou Maria, sentada junto à colega.
— Eu?!
— É, você. Estamos falando da prova de Matemática. Como foi?
— Ah, sim. Matemática! Acho que fui bem.
— Então você foi uma exceção — tornou a falar Maria. — Todo mundo se deu mal.
— Quantas questões você acertou? — procurou saber Augusto.
— Umas três ou quatro.
— Só isto?! Eram dez.
— Acho que fui longe demais. Trinta por cento para mim é muita coisa. Eu não sei nada de Matemática.
— E a Bia, hein. Não está demorando muito, não? — alertou Maria.
— Vou lá ver o que está acontecendo — adiantou Marta.
— Nós vamos com você.
E junto com Marta seguiram todas as garotas do grupo.
Mal entraram no banheiro e viram que alguma coisa não estava bem com a colega de classe.
Bia estava sentada junto à parede, com a cabeça entre as pernas.
Aproximou-se, às pressas, o bando de garotas.
— O que aconteceu, Bia? Por que está chorando? — indagou logo Maria, a primeira a abraçar a amiga.
— É a sua mãe, não é?
Não houve resposta, apenas uma afirmativa com a cabeça e um choro fino, doído. De repente, Beatriz ficou de pé, enxugou as lágrimas, abraçou as amigas e, com um olhar decidido, disse:
— Vamos voltar. Precisamos trabalhar. Vamos ao trabalho!
— Mas você não está nada bem. Acho que deveria...
— Nada disso. Minha mãe me falou, antes de eu vir para a escola, que eu deveria me empenhar neste trabalho e que eu desse o melhor de mim.
— Mas... — tentou argumentar Marta.
— Não tem mas coisa nenhuma. Vamos à luta — exclamou Bia, saindo do banheiro em companhia das colegas.
— Anotei aqui algumas coisas, inclusive as idéias centrais do texto — disse Beatriz, voltando-se a sentar onde estava anteriormente.
Beatriz falava com desenvoltura como sempre fizera. O que estava se passando com sua mãe, por certo, era algo grave, mas de forma nenhuma ela deixaria se abater por aquilo. Na noite anterior, havia esboçado as falas de cada um das personagens, escalado, provisoriamente, o elenco.
— Mas isto são apenas idéias. Não quero que aceitem o que fiz simplesmente. Todos vocês devem opinar. Só quis adiantar as cosias.
— Não gostei deste negócio de eu ser o Saci — disse Augusto, mostrando-se visivelmente decepcionado.
— E por que não? — procurou saber Marta.
— Acho que eu ficaria melhor de advogado de defesa ou de promotor.
— É, mas você é o único homem do grupo — informou Silvia.
— É mesmo. E o único personagem que não pode ser mulher é mesmo o Saci — adicionou Marta. — Saci, pelo que sei, é do sexo masculino.
— E quem disse que o saci é do sexo masculino? — perguntou o menino.
— Você já ouviu alguém dizer “a Saci Pererê”, seu besta? — perguntou Bia com um sorriso discreto.
— Se fosse a mula sem cabeça, tudo bem, mas é o saci, meu amigo. Precisa ser homem para interpretá-lo. Homem com “H” maiúsculo, entendeu? — tornou a dizer Marta tentando, com isto, convencer o colega de que aquele era o papel adequado para ele.
— E o que este Saci vai falar durante a peça? — interrompeu Augusto, achando estranho o caminho que a conversa estava tomando.
— Pouca coisa — admitiu Bia.
— Quase nada — adicionou Maria.
— Na verdade, você vai ficar calado o tempo todo. Réu, normalmente, não fala nos julgamentos.
— É que vamos fazer o julgamento do Saci Pererê na peça.
— Estou fora! — disse o menino pondo-se de pé. — Sou branco. Pelo que sei, este personagem é negro.
— E o que tem isto? Para que existe tinta?
— Tinta??!! Estão querendo me pintar?
— E o que tem isto demais? É tinta própria para pintura de pele. Com um pouco de água sai logo — riu Maria.
— Nada disto! — disse Augusto, já se mostrando irritado.
— Artista é artista, Augusto. Precisa se submeter a este tipo de coisa — disse Beatriz. — Mas, se não quer, temos aqui a cozinheira. É uma escrava. Esta fala bastante. O texto é enorme. Quer?
— Não é possível!! Esta é pior ainda. Além de ter que me pintar, ainda vou ter que me vestir de mulher? Não acredito!! Eu que pensei que estrearia no teatro no papel de um rei, um senhor feudal... vou começar vestido de mulher? Nunca! Jamais!
— Então? Topa ou não topa o papel do Saci? — indagou Bia.
— Podemos dar o papel da cozinheira para a Maria e eu mesma faço o do saci e você faz o do juiz, quer? — comentou Marta.
— Do Juiz?! Gostei. E qual é a fala do juiz?
— Esta — disse Beatriz exibindo um pedaço de papel com três frases apenas.
— Só isto?! — estranhou Augusto ao ler o que havia no papel
— A fala é mesmo pequena, mas significativa.
— Imagine: “senhores, declaro iniciado o julgamento”, depois vem “objeção negada” e por fim “condeno o réu Saci Pererê a brincadeiras forçadas”. Isto é papel que se dê para uma pessoa com meu talento?
— O que você acha então de ser o diretor? — arriscou Bia. — O diretor é uma pessoa muito importante neste processo. Sem ele nada feito.
— Gostei! Diretor. E quais são as falas do diretor? — indagou Augusto, curioso.
— Ah, não se preocupe, o diretor fala bastante. Aliás, é o que mais fala em uma peça de teatro — informou Bia.
— E quanto tempo eu fico em cena?
— Aí é que está o problema: o diretor não aparece em cena — foi logo avisando Beatriz. — O diretor fica nos bastidores, ora. Mas é ele quem organiza tudo, diríamos assim. É muito importante.
— Estou fora. Você, Bia, é que deve ser boa para estas coisas. Adora dar ordens.
— Só temos estas opções, infelizmente, Augusto. É pegar ou largar. Se começar a criar muito caso, vamos pedir à professora que o troque de grupo — avisou Marta. — Mas vou lhe dizer uma coisa: vai perder uma boa oportunidade de se lançar como artista — completou sorrindo a menina.
— Se me trocarem de grupo, vou levar esta idéia para o grupo onde eu for — ameaçou o menino.
— Se fizer uma coisa destas, nós vamos te matar, seu cretino! — exclamou Maria, visivelmente nervosa.
— Calma, que desta forma nós não vamos resolver nada — ponderou Beatriz. — E então, qual papel prefere?
— Aceito ser o Saci. Agora eu quero umas falas. Já vi em alguns julgamentos mostrados em filmes que o réu tem direito de falar.
— Vamos abrir para você uma exceção — falou Marta sorrindo.
— E vou ter que ficar pulando de um lado para outro com uma perna só?
— Augusto, às vezes, acho que você é meio idiota — disse Marta. — Onde já se viu réu ficar zanzando pelo tribunal? Ele chega, senta e fica lá o tempo todo, quietinho. E só fala se for autorizado pelo juiz. Lembre-se disto!
— E vou mesmo ter que me pintar de preto?
— Você já ouviu falar de Saci Pererê branco? — brincou Bia.
Definir os papéis e seus respectivos intérpretes foi tudo que conseguiram naquele dia. Os ensaios começariam na aula seguinte.
— Olha, pessoal, acho bom todos nós conhecermos muito bem esta lenda, pois, na verdade quem pesquisou foi apenas eu e a Marta — sugeriu Bia ao chegar à sala no dia seguinte.
Beatriz estava com o semblante ainda mais triste que no dia anterior. Aquilo não passou despercebido aos olhos dos colegas. Maria foi a primeira a procurar por notícias da mãe da colega.
— Foi internada ontem à noite. Não está nada bem e...
Bia não terminou a frase. Imediatamente as lágrimas lhe vieram aos olhos.
Como que por instinto, Maria abraçou-se à amiga e ouviu quase ao ouvido:
— Estou com medo que minha mãe morra, minha amiga — disse Bia quase num sussurro. — Ela está muito doente mesmo.
— E seu pai?
— Chegou ontem à tarde. Ele estava trabalhando no interior. Disse que vai ficar por aqui alguns dias ao lado dela. E o pior é que eu não posso fazer nada — admitiu Beatriz. — Meu pai me disse que nem visitá-la eu posso.
— É alguma doença contagiosa?
— Não sei. Não querem me dizer a verdade, acho. Não sei como vai ser voltar para casa hoje, depois das aulas. Sempre almoçávamos juntas. Maria, eu não quero voltar para casa e não encontrar minha mãe lá — disse Bia já aos prantos.
— Quer ficar na minha casa por uns dias? É isto, fique lá até sua mãe melhorar. Vou pedir a meu pai para falar com o seu. Pode ficar lá o tempo que for necessário. Assim não fica sozinha.
— Não quero dar trabalho.
— Por favor, Bia. Vou ligar para meu pai na hora do intervalo. Daqui você já vai direto para minha casa.
Minutos depois, mais calma, Beatriz já coordenava os trabalhos do grupo.
— Vou fazer o melhor que puder porque quero que no dia da apresentação minha mãe esteja na platéia. É um presente que quero dar a ela.
— Não se esqueçam de que nosso trabalho vai concorrer com todos os demais. Só vamos para a apresentação final se conseguirmos a melhor performance de todas as turmas — alertou Augusto.
— Nós vamos encenar a melhor peça que esta escola já viu — adiantou Marta. — Será nosso presente para a mãe da Bia.
— É isto mesmo, pessoal. Vamos entrar nesta para ganhar — disse Silvia que, até então, não havia se manifestado.
— Meu Deus! Vejam só quem está falando. Estou gostando minha amiga — disse Maria com um sorriso, enquanto se abraçava à amiga.
— Vejam bem o que temos que fazer — começou a dizer Bia. — Como sabemos, o Saci é um ser mitológico e que tem algumas características especiais. Mas, de todas elas, a que nos interessa para este trabalho são suas atitudes que, muitas vezes, não passam de brincadeiras, mas que trazem alguns problemas para as pessoas.
— Eu vi que em certos lugares do Brasil ele é considerado um ser maligno — adicionou Augusto.
— Isto mesmo — confirmou Beatriz. — Mas não acho que devemos ir por este caminho. Vamos pegar o lado mais humano dele. Assim a peça fica mais próxima das crianças que serão o nosso público se viermos a ganhar o festival.
— Também acho — concordou Marta.
— Eu já consegui o cachimbo e a carapuça vermelha que ele usa — adiantou Augusto. — E já estou treinando andar com uma perna só. Estou ficando craque neste negócio.
— Mas não precisa de muito treino não. Não se esqueça de que vai ficar sentado o tempo todo — lembrou Beatriz.
— Existem três tipos de Sacis: O Pererê, que é pretinho, o Trique, moreno e brincalhão e o Saçurá, que tem olhos vermelhos — comentou Augusto. — Por que temos que mostrar logo o negro?
— Porque este é o mais conhecido, ora — contra-argumentou Marta.
— Como sabemos, ele adora fazer pequenas travessuras, como esconder brinquedos, soltar animais dos currais, derramar sal nas cozinhas, fazer tranças nas crinas dos cavalos — adicionou Bia.
— Muitas destas brincadeiras devem trazer mesmo sérios problemas para as pessoas. E é exatamente por isto que vamos julgá-lo — completou Marta.
De repente, Silvia, com uma folha de papel nas mãos, disse:
— Vejam o que diz aqui: “dentro de todo redemoinho de vento existe um Saci. Ele não atravessa córregos nem riachos.” Como vamos encenar isto?
— Vamos ver o que é possível de levar para o palco. Em teatro, não conseguimos, muitas vezes, ser fiéis ao texto original. Vamos usar a nossa criatividade — sugeriu Beatriz.
— Outra coisa, voltou a dizer a menina. “Alguém perseguido por ele, deve jogar cordas com nós em seu caminho. Ele pára para desatar os nós e assim deixa que a pessoa fuja.”
— Esta parte é fácil — declarou Maria. — Corda eu tenho em casa.
— Gente, estamos nos esquecendo de uma coisa: não vamos encenar uma peça sobre o Saci Pererê e sim o seu julgamento — lembrou Bia.
— É mesmo — concordaram todos.
— Então podemos nos esquecer destes detalhes — avisou Maria.
— Eu sei que não tem nada a ver, mas agora fiquei curioso com uma coisa — disse o único menino do grupo.
— E o que é Augusto? — perguntou Marta.
— Em quase todas as lendas existe uma maneira de quebrar o encanto destes seres. O que é preciso fazer para se livrar de um pestinha como este?
— Aqui na pesquisa não diz nada sobre isto — tornou a dizer Sílvia. — O que diz aqui é o seguinte: “se alguém jogar dentro do redemoinho um rosário de mato bento ou uma peneira, pode capturá-lo, e, se conseguir sua carapuça, será recompensado com a realização de um desejo.”
— Vamos, então, recapitular o que já temos — disse Beatriz outra vez tomando o comando dos trabalhos. — O Augusto será o Saci, eu serei a promotora, a Marta a advogada de defesa, a Sílvia, para mim, fica melhor de juíza e a Maria será uma testemunha.
— E vamos ter apenas uma testemunha?! Não pode ser! — disse Marta. — Testemunhas são no mínimo duas: uma de acusação e outra de defesa.
— Não tínhamos pensado nisto — concordou Bia. — E agora?
— Como as duas testemunhas não aparecem simultaneamente... — respondeu Marta.
— Está insinuando que eu faça as duas testemunhas?
— E, por que não? Enquanto você troca de roupa a gente enrola o público com uma discussão entre a juíza e o advogado de defesa.
— Gostei da idéia — emendou Bia.
— Não sei se vou dar conta. É muito texto para decorar.
— Dá conta sim, ora. Temos mais de vinte dias até a apresentação — lembrou Beatriz.
Faltavam apenas dez minutos para o término da aula quando a coordenadora da escola se aproximou do grupo e pediu que Beatriz a acompanhasse. Ninguém fez qualquer comentário, mas puderam todos imaginar o que se passava. Entreolharam-se em silêncio. Minutos depois, veio um funcionário da escola buscar sua mochila na sala de aula. O homem entrou e saiu calado.
— Meu Deus, será... — tentou falar Marta.
Não houve, como anteriormente, nenhum comentário. A partir daquele momento, o silêncio imperou entre os componentes do grupo. Estavam todos apreensivos.
Foi a última vez que viram a colega naquela semana.
Bia só retornou à sala de aula na semana seguinte, já na quarta-feira. Chegou cabisbaixa, sentou-se como se estivesse em um ambiente onde não conhecia ninguém. Como todos já sabiam, a mãe da menina continuava internada em estado muito grave. Ninguém ali tinha informações precisas sobre o que se passava com dona Mônica. Era uma destas doenças raríssimas que muita gente sequer sabe o nome.
Beatriz estava visivelmente abatida. Curiosamente, todos queriam saber notícias sobre sua mãe, mas ninguém se arriscava. No entanto, sabiam que nenhuma tragédia havia se abatido sobre a colega nas últimas horas, caso contrário, ali ela não estaria.
O segundo horário era outra vez aula de Português. Era o momento para todos se interarem do que estava realmente se passando. A presença da colega em classe não significava, nem melhora, nem piora no estado de sua mãe.
Aquela primeira aula foi, sem dúvida alguma, a mais longa da existência daquela meninada.
Ao entrar, a professora Vera pediu licença para falar de algo muito sério. Aproximou-se de Bia, abraçou-a e falou do estado de saúde de sua mãe. Disse que, apesar de o estado de saúde da senhora Mônica estar estável, ainda inspirava cuidados e pediu que todos dessem as mãos e fizessem uma oração pelo seu restabelecimento. Imediatamente trinta e três vozes ecoaram pela sala de aula. Era como um coral afinado e muito bem ensaiado articulando com precisão cada palavra.
Ao final, Augusto pediu a palavra. Ninguém ousou interferir.
— Eu gostaria de dizer em meu nome e em nome de toda a classe da alegria de tê-la de volta ao nosso convívio, Beatriz. Saiba que você fez uma falta muito grande para todos nós. Pedi a Deus, todos os dias, pela sua mãe e acho que muita gente aqui deve ter feito o mesmo. Todos os dias, nos intervalos, nos reuníamos e orávamos para que sua mãe voltasse logo para casa. Isto ainda não aconteceu, mas, temos certeza, de que vai acontecer em breve.
Enquanto o menino falava, era possível ver as lágrimas descendo pelo rosto de Bia. Em um momento como aquele era impossível conter o choro.
— Dizem que só conhecemos os verdadeiros amigos nas horas de muita dificuldade — disse a menina enxugando as lágrimas. — Não sei o que dizer diante de tanto carinho.
— Enquanto esteve fora, demos seqüência ao trabalho que havíamos começado. Já decoramos nossas falas, já definimos o cenário. Usamos suas idéias, para variar. Estávamos torcendo para que você voltasse logo — disse Marta com um sorriso.
— Pois eu estou de volta e pronta para recomeçar. Minhas falas já estão todas gravadas.
— Estamos felizes mesmos com sua volta, Bia — disse do fundo da sala Alberto, um aluno com quem a menina raramente falava.
— Então — interferiu Vera —, ao trabalho. Há alguns grupos que estão um pouco atrasados, inclusive o de vocês, Bia. Precisam pensar no figurino e em alguns outros detalhes.
— Só temos mais três aulas para os ensaios — adiantou Maria. — Agora que está de volta, vamos ter que andar rápido com isto.
Em alguns minutos, estavam todos no pátio. Aos poucos, Bia foi se interando do que havia sido feito pelos colegas. Ajudou dar os retoques finais no texto, ouviu com atenção a argumentação que sua adversária usaria durante o julgamento.
— Achei que está ótimo assim. Vou ter que fazer algumas poucas adaptações em minha fala.
— Em um trabalho como este, o improviso, às vezes, tem uma importância muito grande — adicionou Maria. — Se o advogado ou o promotor esquecer alguma parte do texto, pode inventar, que não vai haver muito problema, acho. Basta ter presença de espírito. O público nunca vai saber, mesmo, o que foi ensaiado ou não.
Os dias que se seguiram foram mais que suficientes para a finalização das atividades do grupo. No último dia de aula da unidade, seriam feitas as apresentações. Uma comissão julgadora, composta por vários professores, pela diretora da escola e por um professor de teatro seriam os responsáveis pela seleção do melhor espetáculo. Cada peça deveria durar entre trinta e quarenta minutos. Qualquer grupo que excedesse este tempo perderia pontos.
Todos os aspectos possíveis seriam analisados, desde o figurino, o texto, até a performance dos atores.
O texto sobre o julgamento do Saci estava na ponta da língua e cada movimento prévia e devidamente ensaiado.
— Acho que não vai ter para ninguém — comentou Augusto antes de entrar em cena.
— Gostaria de ter esta sua confiança — disse Sílvia. — Estou muito nervosa. Não sei se vou conseguir.
— Esqueça o público e as pessoas que irão julgar a peça. Faça o que você fez nos ensaios que vai dar um show, minha amiga — falou Beatriz abraçando-se à colega.
— Mas eu sou a primeira a entrar. E se eu tropeçar em alguma coisa e cair?
— Em que você poderia tropeçar?
— Sei lá. Torcer um pé, então.
— Não vai acontecer nada disto. Vamos estar todos maravilhosos em cena. Não se esqueçam de que este é um espetáculo que daremos de presente à mãe de Bia daqui alguns dias. Mas, para isto, precisamos ser os melhores, lembrem-se — argumentou Marta.
— É agora! — exclamou Beatriz ao ver as cortinas se abrindo. — Boa sorte para todos.
Silvia entrou de forma triunfal. Vestida a caráter, ignorou o público, como havia sugerido a amiga, e sentou-se. Diante dela, já estava o réu. Augusto decidido, a não ser mais tarde, alvo de piadas dos colegas, entrou antes e se posicionou no lugar devido. Entrar pulando com um pé só era algo impraticável.
Silvia, ao vê-lo, acreditou que teria uma crise de risos. Augusto, vestido daquela forma e com o corpo todo pintado, era tudo que queria ver. E o melhor de tudo: sem quase nenhuma maneira de aparecer.
Na cabeça, o menino usava uma touca vermelha como determinava o texto. No entanto, o que mais lhe chamou a atenção e que quase fez com que ela colocasse tudo a perder com uma nova crise de risos, foi a cabeleira usada pelo colega. Parecia uma imensa moita de capim totalmente negra, coberta por uma lona de cor vermelha.
As demais colegas, ainda nos bastidores, ao perceberem a reação de Sílvia, desataram na risada.
— Pessoal, comportem-se. Deste jeito não vai dar certo — alertou Marta, a segunda a entrar em cena.
Um a um as personagens foram desfilando diante do público atencioso. Em pouco tempo, começaram a inquirir as testemunhas.
— Então, a senhora quer dizer que era comum encontrar a cozinha repleta de sal espalhado pelo chão? — indagou a promotora.
— Exatamente, senhora.
— E o que mais a senhora presenciou que poderia ser creditado ao Saci Pererê?
— Este sujeito é um diabinho, senhora. Várias vezes encontrei roupas espalhadas pela casa. Uma vez encontrei um rato morto dentro de uma panela de feijão. Uma coisa horrorosa!
— Protesto, meritíssima! — interferiu a advogada de defesa. — Um fato como este não pode jamais ser creditado ao meu cliente. Era uma casa de fazenda, onde a presença de ratos é muito natural.
Mais tarde.
— A senhora tem mais alguma pergunta a ser feita à testemunha? — procurou saber a juíza, dirigindo-se à promotora.
— A senhora informou que era comum os cavalos da fazenda aparecerem com as crinas todas embaraçadas pela manhã.
— Isto mesmo. Eram muito freqüentes coisas deste tipo.
— Quando a senhora diz: “coisas deste tipo”, a senhora está querendo dizer o quê?
— Era comum, pela manhã, também as vacas estarem em companhia dos bezerros.
— E isto, por certo, prejudicava a produção de leite, claro? Então, a senhora poderia afirmar que o Saci trazia prejuízos financeiros para os fazendeiros da região?
— Protesto, meritíssima! — exclamou a advogada de defesa. — Naquela época, não se produzia leite como se produz hoje em dia com o objetivo de vender. Portanto, não se pode falar em prejuízos financeiros.
De repente, movido por inquietude sem tamanho, o réu ergueu o braço. Certamente, Augusto imaginou que seria como em uma sala de aula onde um simples gesto daquele garantiria sua participação. Mas, a juíza não estava a fim de dar-lhe qualquer tipo de atenção, muito menos a palavra. Sílvia manteve-se, portanto, totalmente alheia à sua manifestação
Mas o rapazinho não estava disposto a sair dali sem uma participação efetiva. Continuou com o braço erguido. Instantes depois, certo de que se não tomasse alguma atitude, a peça chegaria ao final sem que ele dissesse nada, Augusto disparou:
— Gostaria de falar algo em minha defesa.
— Silêncio no tribunal — esbravejou a juíza.
— Mas eu quero falar! – voltou a insistir o menino.
— Senhor réu — disse Sílvia mantendo o tom ríspido da voz, — devo adverti-lo que sua participação sem a minha devida autorização pode lhe trazer conseqüências bastantes desagradáveis.
Nenhum dos integrantes da peça acreditara no que estava vendo e ouvindo. Aquela era mesmo a Sílvia que há tanto tempo conheciam? Falando com aquele desembaraço e aquela entonação? Bia e Marta se entreolharam e sorriram, discretamente para a colega. Bia fez com o dedo polegar o sinal de positivo e incentivou que ela continuasse.
Mas, aparentemente, aquilo era tudo que Augusto queria. Era uma deixa preciosa para que ele aparecesse como personagem ativo na apresentação.
— Meritíssima, a senhora vai me desculpar, mas estou neste momento dispensando os trabalhos de minha advogada. Acho que a defesa está sendo conduzida de forma inadequada e faço valer os meus direitos de dispensá-la neste momento.
— De que direito o senhor está falando?! — voltou à carga a juíza. — Ponha-se no seu lugar insignificante de réu e espere pela sentença. Caso contrário, terei que requerer força policial para fazer com que o senhor se cale. Aqui, quem determina as regras sou eu!
— Acha que a senhora me intimida com sua autoridade? Onde já se viu uma juíza se dirigir a um réu chamando-o de insignificante! Posso não ter uma perna, mas não sou meio homem, minha senhora! — gritava Augusto, agora saltitando pelo palco e soltando baforadas de fumaça de seu cachimbo no rosto de todos.
— Meu Deus! — disse baixinho Beatriz para a amiga Marta. — O que deu neste menino?
— Para lhe falar a verdade, algo me dizia que isso poderia acontecer. Ele aceitou muito fácil o papel de Saci. Já havia planejado tudo.
— Deixe que eu vou resolver isto já, quer ver — disse Bia dirigindo-se à juíza.
— Meritíssima, gostaria de pedir-lhe que autorize logo a força policial para que este delinqüente seja de fato calado e posto em seu devido lugar.
Silvia, sem saber o que fazer diante de uma situação daquelas, fez que sim com a cabeça. Foi o bastante para que dois outros colegas de outros grupos que já haviam se apresentado entrassem em cena. Imediatamente, Augusto foi dominado e levado de volta a sua cadeira. Mesmo assim, não se manteve calado. Continuava pleiteando o direito de despachar sua advogada.
— Tenho direitos!! Tenho direitos!! — estas foram suas últimas palavras antes que uma faixa de tecido retirada de um dos forros de uma das mesas lhe servisse de mordaça. Calado o réu e encerrado o espetáculo de Augusto o julgamento continuou.
Lá embaixo na platéia, o riso corria solto. Ninguém podia imaginar que tudo que no palco se passava não estava no script. Algumas pessoas da platéia riam sem parar.
Em menos de meia hora o veredicto:
— Senhores jurados — começou a falar Sílvia. — Chegaram a uma conclusão?
O corpo de jurados fora formado também com alunos de outros grupos, num ato de camaradagem dos colegas.
— Sim, meritíssima! Nós julgamos o réu culpado — declarou o representante dos jurados.
Da platéia veio um sonoro “Oh”.
Sílvia tomou nas mãos o papel que lhe fora entregue e leu a sentença: “condeno o réu Saci Pererê a brincadeiras forçadas para a eternidade.”
Nova onde de sonoros risos tomou conta de todo o ambiente.
Fecharam-se as cortinas e ouviu-se então uma salva de palmas de quase um minuto. Novamente as cortinas foram abertas e ali estavam no palco cinco pessoas vitoriosas. Mas dentre elas, uma merecia a atenção especial dos presentes.
Todos ali sabiam do drama vivido por Beatriz e de sua coragem em enfrentar os monstros que tanto a assombraram nas últimas semanas.
Enquanto os atores ainda recebiam o aplauso do público, a diretora da escola subiu ao palco. Imediatamente todos silenciaram. Ela não havia feito aquilo durante nenhuma das apresentações e aquela não seria a última. Portanto, não estava ali para o encerramento solene do festival sobre o folclore. O que queria dona Emanuela ali, naquele momento?
Fazendo uso de um microfone que lhe foi entregue, a diretora começou a falar. Primeiro cumprimentou os atores parabenizando-os. Depois se dirigiu a Beatriz.
— Sabemos que ainda temos dois grupos para se apresentarem, mas não poderia deixar para depois o que quero fazer. Gostaria de dizer a uma pessoa, que aqui se encontra, que temos um presente muito especial para ela neste momento.
Todos os atores se entreolharam, mas logo não tiveram dúvidas de que Emanuela estava se referindo a Bia.
— Temos aqui, na platéia, uma pessoa muito especial para esta menina. Mas vou dizendo logo que não foi fácil trazê-la até aqui. Foi preciso um veículo especial e uma autorização de um médico. Mas tudo, felizmente, correu às mil maravilhas.
Imediatamente Beatriz correu os olhos pela platéia e procurou pela mãe, mas não a encontrou.
— Não vai vê-la daqui, minha querida, pois ela está em um local especial. Mas vamos trazê-la até aqui para que receba dela o abraço e o beijo que você merece.
A um sinal da diretora, dois homens vestidos de branco empunharam uma maca nos fundos do auditório e subiram com a senhora Mônica ao palco.
A mãe de Bia foi conduzida para junto da menina que, àquela hora, chorava copiosamente. Com dificuldades, a mulher estendeu a mão para tocar o rosto de Beatriz.
Não houve forças para um abraço como anunciara a diretora da escola. Mas, neste momento, a platéia voltou a aplaudir. Imediatamente todos se puseram de pé e, mais uma vez, um ruído de palmas ecoou pelo auditório.
Beatriz, com ternura, inclinou-se e beijou a mãe na testa. Viu nos olhos de Mônica um brilho que há muito não via. Era como se a vida estivesse voltando àquele corpo que quase não resistira a uma prolongada enfermidade.
Quase meia hora mais tarde, o penúltimo grupo entrou no palco. Fizeram uma apresentação soberba sobre a lenda do Boto Cor-de-Rosa. Foi um musical multicolorido que empolgou, desde o primeiro instante, a platéia. Imediatamente todos os demais grupos se convenceram de destroná-los seria impossível. E foi, exatamente isto, que aconteceu: no final do ano, o grupo que mostrou de forma criativa e impecavelmente bem ensaiada a mais famosa lenda da Amazônia, reapresentou-se.
Na platéia, estavam quase todos os alunos da escola e muitas famílias. Dentre elas estava a de Beatriz — seu pai, sua mãe, ela e o irmãozinho Romero.
— E o que ela queria, professora? A senhora não vai ser mandada embora da escola não, vai? — indagou Maria, uma meninazinha miúda, sentada na primeira carteira junto à mesa. — Eu gosto muito da senhora.
— Veja só — comentou, com ares de sabedoria, Augusto um aluno que se encontrava ao lado de Maria. — A escola não pode mandar a professora Vera embora, porque ela é concursada, sua boba.
— Concursada?! O que é isto? — quis saber, curiosa, a menina se dirigindo à professora, como se ignorasse a presença do colega.
— Neste tipo de escola, quando queremos dar aulas, fazemos um prova. Aí as pessoas que tiram as melhores notas são contratadas. E os que são contratados desta forma, não podem ser mandados embora — explicou a professora.
— Nunca? — voltou a indagar a aluna.
— Só se fizermos alguma coisa muito errada, acho — explicou a professora com um sorriso.
— E o que seria uma coisa errada? — a menina tornou a perguntar.
— Por exemplo — intrometeu-se Augusto —, fazendo você calar a boca à força para não ficar perguntando besteira.
Todos os alunos riram da observação do colega. Mas logo se calaram, pois Vera tomou outra vez a palavra.
— Silêncio! Augusto, ela não perguntou nenhuma besteira como você disse. Ela tem todo o direito de perguntar o que quiser. Pior são aqueles alunos que nunca perguntam nada. Muitos têm dúvidas sobre alguma coisa, mas se calam. E sabem por que se calam, senhor Augusto?
— Não, professora — respondeu o menino com um sorriso.
— É porque em todas as turmas tem uma pessoa, como você, meu querido e maravilhoso aluno — disse Vera aproximando-se dele e fazendo-lhe um carinho na cabeça.
— Já sei, professora. Em todas as salas tem uma pessoa inteligente e bem informada como eu, não é?
Novamente os risos se espalharam pela sala. Até a professora não resistiu e começou a rir.
— Não, meu caríssimo aluno, meu geniozinho, meu amado discípulo! — declarou a professora ainda rindo e voltando para seu lugar junto à mesa.
— O que é discípulo?! — indagou Maria, desta vez com uma cara espantada, impedindo que Vera continuasse a falar.
— É isto mesmo, professora — falou um outro aluno lá do meio da sala. — O que é esta coisa que a senhora falou? Este tal de diz...
— Não é este tal de diz — interferiu Augusto. — Assim, discípulo fica parecendo até nome de gente.
— E não é? — quis saber outro colega de classe. — Discípulo da Silva Santos, por exemplo. Eu colocaria este nome no meu filho, se tivesse um, claro. Ficaria muito bonito, diferente.
— Diferente, tenho certeza que ficaria, Lucas — comentou a professora.
— Santa ignorância! — disse, quase gritando, Augusto, pondo-se de pé.
— Sente-se! — ordenou Vera ao aluno. — Fiquem todos calados que eu vou explicar o que significa este tal de discípulo como disse o Lucas.
— Eu posso explicar? — pediu Augusto.
— Não!!!! — gritou quase a classe inteira, ao mesmo tempo.
— Meu Deus! Eu só queria ajudar — comentou o mais falante dos alunos da turma.
— Alguém aí, além do Augusto, sabe o que seria um discípulo? – indagou a professora ainda rindo da situação.
— Mas eu sei o que é discípulo. Deixa eu falar, deixa, professora? — insistiu Augusto.
— Vamos dar oportunidade a outro aluno para se manifestar. Se ninguém souber, aí você explica, tá? — pediu Vera com toda a paciência que lhe era peculiar.
— Mas eu sei mesmo, viu!
— Professora, posso perguntar uma coisa? — falou Marta, uma aluna que se encontrava sentada junto à porta de saída da sala.
— Claro, minha querida.
— Se a senhora colocar uma mordaça em Augusto, a senhora pode ser mandada embora da escola? — indagou a menina rindo. — Só assim para ele ficar calado e deixar os outros falarem. Este menino é muito chato.
— Não sei não, mas acho que sim. Isto seria uma violência contra o direito de expressão. Afinal, todos os cidadãos deste país têm o direito de expressar suas idéias.
— Mas ele se expressa muito — falou outra vez Marta, dando risadas. — Assim não tem quem agüente. Ele é muito chato!
— Voltando ao que estávamos fazendo, alguém aí sabe o que é um discípulo? — disse Vera, voltando-se outra vez para a turma toda.
Ninguém arriscou. Silêncio total.
— Está vendo! — comentou Augusto. — Ninguém sabe.
— Ninguém sabe, mas nós não queremos que você diga, não. Queremos que a professora Vera fale, não é pessoal? — indagou Marta.
— Mas eu sei, ora.
— Augusto, se você não se aquietar, eu vou aí e te estrangulo, seu chato! — falou um outro aluno do fundo da sala, gesticulando como se fosse colocar mesmo em prática o que dizia.
— Meu Deus! Uma outra palavra que vai criar problema — comentou Núbia, uma outra aluna a se envolver na conversa.
— De que palavra está falando, meu amor? — quis saber Vera.
— Esta aí: Estrangulo.
— Não, esta é fácil, não é pessoal? — consultou Vera.
— Estrangular é enforcar — veio uma voz de algum lugar da sala.
— Pronto. Pelo menos este problema está resolvido — comentou a professora.
— Já que ninguém sabe o que é discípulo, vamos permitir que nosso colega Augusto nos diga o que é então, certo pessoal? — disse Vera, aproximando do aluno.
— Posso ficar de pé para explicar? — pediu Augusto.
— Nããããão! — voltou a turma a gritar.
— Basta a explicação — adiantou Vera.
— Pois bem — começou Augusto —, discípulo é aquela pessoa que segue as idéias do outro.
— Muito bem — declarou a professora.
— Professora Vera, um aluno pode ser chamado de discípulo, então? — procurou saber alguém.
— Pode — disse Vera, rapidamente, evitando que Augusto fornecesse também aquela informação. — De uma forma geral, discípulos são aprendizes.
— Entendi — comentou Maria, satisfeita com a explicação.
— Muito bem, pessoal — voltou a falar Vera —, o que temos para hoje?
— A entrega das pesquisas sobre lendas brasileiras, professora — informou Marta.
— Muito bem. Cada grupo ficou responsável por uma lenda e são seis ao todo, não é isto?
— Exatamente — disse um outro aluno.
— Bom, agora vamos nos reunir para começar o trabalho.
— Trabalho?! E vamos fazer alguma coisa com estes textos? — procurou saber Tiago.
— Você não pensou que a atividade sobre lendas brasileiras se resumiria a uma simples pesquisa, pensou?
— Para falar a verdade, pensei sim.
— Então você não esteve muito atento às explicações que dei na aula passada. Cada grupo agora vai se reunir e vai recontar as lendas da maneira que achar mais conveniente. Depois, vamos fazer as apresentações. Cada grupo vai escolher também a melhor maneira de apresentá-las para os colegas. Depois, vamos definir qual grupo de todas as turmas vai fazer a apresentação no encerramento do semestre. Por isto, vamos caprichar, hein pessoal.
Um a um, os grupos foram se organizando sentados no chão aqui e acolá pela sala. Imediatamente começaram as discussões de como estruturar o texto de cada equipe e a melhor maneira de levá-los ao resto das turmas. Sem qualquer interferência, Vera ia de grupo em grupo observando a organização dos trabalhos.
Marta, Maria, Augusto e duas outras colegas, Sílvia e Beatriz formavam um dos grupos. Haviam, por sorteio, ficados com a lenda do Saci Pererê.
— Alguém tem uma idéia de como devemos fazer? — procurou saber Marta. — Já pensei muito, mas não tive nenhuma idéia brilhante.
— E você, gênio? — indagou Maria a Augusto.
— Calma, estou pensando — disse o menino de cabeça baixa.
— Ih, acho que daí, desta vez, não vai sair nada — comentou Marta com um sorriso.
— Quando os gênios pensam, o silêncio deve reinar — disse Augusto com um sorriso.
Em torno deles, cada grupo também tentava reconstruir suas histórias da melhor maneira possível. Mas, meia hora após o início das atividades, ninguém ainda tinha tido nenhuma brilhante idéia. Normalmente, este é mesmo um período crítico de qualquer trabalho: conseguir um fio condutor. Se ele aparece, logo a imaginação flui como uma flecha.
— E então? — perguntou Maria depois de alguns instantes.
— Não esperem que só eu tenha idéias. Assim vou gastar todos os meus neurônios.
Novo silêncio imperou entre os componentes do grupo. Faltavam realmente idéias.
— Quanto tempo ainda temos para o final da aula? — indagou alguém.
— Quinze minutos — informou Augusto consultando o relógio.
— Não dá tempo para mais nada — disse Marta.
— Que nada — interferiu Bia. — Minha mãe, uma vez, me falou que grandes decisões na história do mundo foram tomadas em apenas alguns minutos. Às vezes, alguns minutos são suficientes para grandes idéias.
— Então estamos esperando, Bia — brincou Augusto.
Beatriz sempre se destacara na turma por ser uma pessoa de fala precisa, de participação ativa e de um companheirismo invejável. Sempre estava disposta a ajudar, a dar a mão no momento certo. E muitas eram as vezes que trazia grandes contribuições para os trabalhos coletivos.
— É mesmo, Bia, lembra daquela vez que deu a idéia de fazermos o painel sobre preconceito. Tiramos a maior nota de todas as turmas.
— É, mas hoje as coisas não estão muito boas para o meu lado.
— Estou vendo mesmo que você está meio triste. O que está acontecendo?
— É minha mãe.
— O que aconteceu?
— Está doente — disse Bia, cabisbaixa.
— Alguma coisa séria? — procurou saber Augusto, demonstrando preocupação com a colega.
— Não sei. Não entendo destas coisas. Mas quando saí, hoje cedo, ela estava meio triste. Acho que chorou durante a noite, pois estava com os olhos vermelhos.
— Talvez sejam só estas cosias de mulher — comentou Maria.
— Conheço a minha mãe. Ela não é de ficar assim por qualquer coisa, não.
— E então? Como vamos fazer? — indagou Marta achando que realmente, naquele momento, nada de grandioso iria surgir.
— Eu sugiro que cada um pense em alguma coisa em casa, escrevam e, na próxima aula, voltemos a nos reunir. O que acham?
— Realmente acho melhor — concordou Augusto. — Mas eu não vou ter condições de fazer nada, porque vou a uma festa num sítio de um amigo de minha mãe e só volto no domingo à noite.
Já estavam de saída, quando Beatriz parou, voltou-se e disse:
— Tive uma idéia.
— E qual é? — perguntou curiosa Marta, a única colega de classe que ainda estava ao seu lado.
— Não sei se vai dar certo, mas...
— Fale. Se não der certo, deletamos ora, e vamos pensar em outra coisa.
— Que tal um júri simulado?
— E como é isto? Serve para contar a história do Saci?
— Este tipo de atividade serve para qualquer história e acho que ninguém irá pensar nisto. Vamos fazer algo diferente de tudo que vão apresentar. Basta que tenha uma personagem que possa ser julgada culpada ou inocente.
— E como é isto? De onde tirou esta idéia?
— Tenho uma tia que é professora. Ela quem me contou sobre um trabalho que ela fez na escola. Achei muito interessante.
— E como é isto? Ainda temos alguns minutos. Quer falar sobre isto agora?
Em poucas palavras, Beatriz expôs sua idéia e como seria elaborado o trabalho.
— Menina, é fantástica esta sua idéia! Já até me vejo como advogada de defesa. Você será perfeita no papel da advogada de acusação.
— A idéia, como te falei, não é minha. Vou falar com minha tia para ela nos ajudar no que for preciso.
— Não importa de quem seja a idéia, o que importa é que é muito boa — disse, Marta, empolgada com o caminho que as coisas estavam tomando. — Vamos arrasar, minha amiga.
— Faremos, então, o julgamento do Saci — disse Bia, sorrindo ainda abraçada à colega.
— E quem fará o papel do Saci? — perguntou Marta.
— O Augusto, claro — declarou Beatriz.
— Mas o Augusto é branco.
— Nós vamos pintá-lo de preto, ora. É o castigo dele por ser muito chato e não querer ajudar na produção do texto. Viu que folgado. Disse que não podia ajudar porque iria passar o final de semana em um sítio. Vai se divertir e nós trabalharmos. Ele que espere! — falou Bia, em tom teatral.
— Vamos mesmo pintá-lo de negro?!
— Por que não? O que tem isto de mais?
— Bem que o Ângelo poderia estar em nosso grupo, né? Ele é maravilhoso! Fala tão bem e já é negro — comentou Marta, avistando o referido colega de classe junto ao balcão da cantina.
— Não precisamos do talento todo do Ângelo para um papel destes. O réu, normalmente, não fala nada mesmo. Qualquer idiota pode fazer isto.
— O Augusto vai morrer de raiva — comentou Maria que já, àquela hora, se juntara às outras duas colegas.
— Por quê? — fez-se de desentendida Beatriz.
— Se ele não puder falar durante a peça ele vai morrer. Ficar ali, sentado, sem dizer nada para ele vai ser a morte. Não vai topar de jeito nenhum — voltou a falar Maria.
— Vai ter que topar, sim. Ele é o único homem da equipe. Está decidido — determinou Marta.
— Se ele criar muito caso, vamos dar umas falinhas para ele, poucas, claro — sugeriu Bia, sorrindo.
— Para falar a verdade, achava que este papel deveria ficar com a Sílvia — ironizou Marta.
— Por que ela?
— Ela é que é boa para fazer este tipo de papel. Se não precisa falar nada, é com ela mesma.
— Que nada! É até bom que ela faça um outro papel. De algum personagem que precise falar. Assim ela vai soltando a língua.
— Não sei, não. Tem já uns três dias que não ouço a sua voz em sala — falou Marta.
— Vamos até fazer um favor para ela. Vamos colocá-la como testemunha, então — falou Beatriz decidida.
— Por quê?
— Algumas testemunhas não precisam falar muito. É bom que ela faça alguma coisa que precise falar. Com o tempo, ela vai se acostumando.
— É mesmo! Ouvi dizer que tem muitos atores que eram tímidos demais e entraram para o teatro exatamente por isto. Hoje são astros da televisão e do cinema.
— Então, vamos fazer um favor a ela — comentou Bia se dirigindo para a rua.
No dia seguinte, uma terça-feira, a aula de Português era no primeiro horário. Quando chegaram, Vera já aguardava os alunos, sentada à mesa.
Depois de todos sentados, depois da chamada feita, uma pergunta:
— E então, meus caros, alguma idéia brilhante para contar a lenda pesquisada?
Apenas um dos grupos não havia ainda resolvido aquela questão fundamental ao trabalho. Todos os demais já estavam prontos pra começar as atividades.
Observando, grupo por grupo, a professora Vera foi certificando-se de que tudo estava sendo encaminhado da melhor maneira possível. Aqui e ali dava uma idéia, ouvia os alunos e apresentava soluções para pequenos problemas que, normalmente, surgem em uma atividade como aquela. Dos cinco grupos, um iria apresentar a lenda em forma de dança, dois em forma de encenação teatral, um outro em forma de musical e o de nossos personagens em forma de júri simulado. Uma novidade!
Sentados, agora no pátio da escola, os alunos começaram a discussão a respeito da divisão de papéis.
— E sua mãe, Bia? — indagou Marta, percebendo a colega ainda triste e pensativa.
— Tudo bem — respondeu a menina sem erguer sequer a cabeça.
— Bem não está, né? Você não é assim. Está sempre sorridente.
— É sua mãe, não é? — perguntou também Marta.
— Não está nada bem.
— Descobriu o que é? Meu pai é médico. Talvez ele possa ajudar — adiantou Augusto.
— Obrigada, mas ela vai, de novo, a um médico, agora pela manhã. Esperem aqui que preciso ir ao banheiro — disse Bia se afastando, apressadamente. — Já volto. Fiz algumas anotações em meu caderno e quero mostrar para vocês. Não demoro.
Os demais colegas continuaram conversando sobre outros assuntos enquanto aguardavam pelo regresso da colega.
— E a prova de matemática, hein? — comentou Maria.
— Nem me fale. Desta vez o professor Rodolfo levou todo mundo para o buraco — disse Marta.
— Bem que ele falou que era melhor nós estudarmos mesmo — afirmou Augusto.
— E você, Sílvia, como foi? — indagou Maria, sentada junto à colega.
— Eu?!
— É, você. Estamos falando da prova de Matemática. Como foi?
— Ah, sim. Matemática! Acho que fui bem.
— Então você foi uma exceção — tornou a falar Maria. — Todo mundo se deu mal.
— Quantas questões você acertou? — procurou saber Augusto.
— Umas três ou quatro.
— Só isto?! Eram dez.
— Acho que fui longe demais. Trinta por cento para mim é muita coisa. Eu não sei nada de Matemática.
— E a Bia, hein. Não está demorando muito, não? — alertou Maria.
— Vou lá ver o que está acontecendo — adiantou Marta.
— Nós vamos com você.
E junto com Marta seguiram todas as garotas do grupo.
Mal entraram no banheiro e viram que alguma coisa não estava bem com a colega de classe.
Bia estava sentada junto à parede, com a cabeça entre as pernas.
Aproximou-se, às pressas, o bando de garotas.
— O que aconteceu, Bia? Por que está chorando? — indagou logo Maria, a primeira a abraçar a amiga.
— É a sua mãe, não é?
Não houve resposta, apenas uma afirmativa com a cabeça e um choro fino, doído. De repente, Beatriz ficou de pé, enxugou as lágrimas, abraçou as amigas e, com um olhar decidido, disse:
— Vamos voltar. Precisamos trabalhar. Vamos ao trabalho!
— Mas você não está nada bem. Acho que deveria...
— Nada disso. Minha mãe me falou, antes de eu vir para a escola, que eu deveria me empenhar neste trabalho e que eu desse o melhor de mim.
— Mas... — tentou argumentar Marta.
— Não tem mas coisa nenhuma. Vamos à luta — exclamou Bia, saindo do banheiro em companhia das colegas.
— Anotei aqui algumas coisas, inclusive as idéias centrais do texto — disse Beatriz, voltando-se a sentar onde estava anteriormente.
Beatriz falava com desenvoltura como sempre fizera. O que estava se passando com sua mãe, por certo, era algo grave, mas de forma nenhuma ela deixaria se abater por aquilo. Na noite anterior, havia esboçado as falas de cada um das personagens, escalado, provisoriamente, o elenco.
— Mas isto são apenas idéias. Não quero que aceitem o que fiz simplesmente. Todos vocês devem opinar. Só quis adiantar as cosias.
— Não gostei deste negócio de eu ser o Saci — disse Augusto, mostrando-se visivelmente decepcionado.
— E por que não? — procurou saber Marta.
— Acho que eu ficaria melhor de advogado de defesa ou de promotor.
— É, mas você é o único homem do grupo — informou Silvia.
— É mesmo. E o único personagem que não pode ser mulher é mesmo o Saci — adicionou Marta. — Saci, pelo que sei, é do sexo masculino.
— E quem disse que o saci é do sexo masculino? — perguntou o menino.
— Você já ouviu alguém dizer “a Saci Pererê”, seu besta? — perguntou Bia com um sorriso discreto.
— Se fosse a mula sem cabeça, tudo bem, mas é o saci, meu amigo. Precisa ser homem para interpretá-lo. Homem com “H” maiúsculo, entendeu? — tornou a dizer Marta tentando, com isto, convencer o colega de que aquele era o papel adequado para ele.
— E o que este Saci vai falar durante a peça? — interrompeu Augusto, achando estranho o caminho que a conversa estava tomando.
— Pouca coisa — admitiu Bia.
— Quase nada — adicionou Maria.
— Na verdade, você vai ficar calado o tempo todo. Réu, normalmente, não fala nos julgamentos.
— É que vamos fazer o julgamento do Saci Pererê na peça.
— Estou fora! — disse o menino pondo-se de pé. — Sou branco. Pelo que sei, este personagem é negro.
— E o que tem isto? Para que existe tinta?
— Tinta??!! Estão querendo me pintar?
— E o que tem isto demais? É tinta própria para pintura de pele. Com um pouco de água sai logo — riu Maria.
— Nada disto! — disse Augusto, já se mostrando irritado.
— Artista é artista, Augusto. Precisa se submeter a este tipo de coisa — disse Beatriz. — Mas, se não quer, temos aqui a cozinheira. É uma escrava. Esta fala bastante. O texto é enorme. Quer?
— Não é possível!! Esta é pior ainda. Além de ter que me pintar, ainda vou ter que me vestir de mulher? Não acredito!! Eu que pensei que estrearia no teatro no papel de um rei, um senhor feudal... vou começar vestido de mulher? Nunca! Jamais!
— Então? Topa ou não topa o papel do Saci? — indagou Bia.
— Podemos dar o papel da cozinheira para a Maria e eu mesma faço o do saci e você faz o do juiz, quer? — comentou Marta.
— Do Juiz?! Gostei. E qual é a fala do juiz?
— Esta — disse Beatriz exibindo um pedaço de papel com três frases apenas.
— Só isto?! — estranhou Augusto ao ler o que havia no papel
— A fala é mesmo pequena, mas significativa.
— Imagine: “senhores, declaro iniciado o julgamento”, depois vem “objeção negada” e por fim “condeno o réu Saci Pererê a brincadeiras forçadas”. Isto é papel que se dê para uma pessoa com meu talento?
— O que você acha então de ser o diretor? — arriscou Bia. — O diretor é uma pessoa muito importante neste processo. Sem ele nada feito.
— Gostei! Diretor. E quais são as falas do diretor? — indagou Augusto, curioso.
— Ah, não se preocupe, o diretor fala bastante. Aliás, é o que mais fala em uma peça de teatro — informou Bia.
— E quanto tempo eu fico em cena?
— Aí é que está o problema: o diretor não aparece em cena — foi logo avisando Beatriz. — O diretor fica nos bastidores, ora. Mas é ele quem organiza tudo, diríamos assim. É muito importante.
— Estou fora. Você, Bia, é que deve ser boa para estas coisas. Adora dar ordens.
— Só temos estas opções, infelizmente, Augusto. É pegar ou largar. Se começar a criar muito caso, vamos pedir à professora que o troque de grupo — avisou Marta. — Mas vou lhe dizer uma coisa: vai perder uma boa oportunidade de se lançar como artista — completou sorrindo a menina.
— Se me trocarem de grupo, vou levar esta idéia para o grupo onde eu for — ameaçou o menino.
— Se fizer uma coisa destas, nós vamos te matar, seu cretino! — exclamou Maria, visivelmente nervosa.
— Calma, que desta forma nós não vamos resolver nada — ponderou Beatriz. — E então, qual papel prefere?
— Aceito ser o Saci. Agora eu quero umas falas. Já vi em alguns julgamentos mostrados em filmes que o réu tem direito de falar.
— Vamos abrir para você uma exceção — falou Marta sorrindo.
— E vou ter que ficar pulando de um lado para outro com uma perna só?
— Augusto, às vezes, acho que você é meio idiota — disse Marta. — Onde já se viu réu ficar zanzando pelo tribunal? Ele chega, senta e fica lá o tempo todo, quietinho. E só fala se for autorizado pelo juiz. Lembre-se disto!
— E vou mesmo ter que me pintar de preto?
— Você já ouviu falar de Saci Pererê branco? — brincou Bia.
Definir os papéis e seus respectivos intérpretes foi tudo que conseguiram naquele dia. Os ensaios começariam na aula seguinte.
— Olha, pessoal, acho bom todos nós conhecermos muito bem esta lenda, pois, na verdade quem pesquisou foi apenas eu e a Marta — sugeriu Bia ao chegar à sala no dia seguinte.
Beatriz estava com o semblante ainda mais triste que no dia anterior. Aquilo não passou despercebido aos olhos dos colegas. Maria foi a primeira a procurar por notícias da mãe da colega.
— Foi internada ontem à noite. Não está nada bem e...
Bia não terminou a frase. Imediatamente as lágrimas lhe vieram aos olhos.
Como que por instinto, Maria abraçou-se à amiga e ouviu quase ao ouvido:
— Estou com medo que minha mãe morra, minha amiga — disse Bia quase num sussurro. — Ela está muito doente mesmo.
— E seu pai?
— Chegou ontem à tarde. Ele estava trabalhando no interior. Disse que vai ficar por aqui alguns dias ao lado dela. E o pior é que eu não posso fazer nada — admitiu Beatriz. — Meu pai me disse que nem visitá-la eu posso.
— É alguma doença contagiosa?
— Não sei. Não querem me dizer a verdade, acho. Não sei como vai ser voltar para casa hoje, depois das aulas. Sempre almoçávamos juntas. Maria, eu não quero voltar para casa e não encontrar minha mãe lá — disse Bia já aos prantos.
— Quer ficar na minha casa por uns dias? É isto, fique lá até sua mãe melhorar. Vou pedir a meu pai para falar com o seu. Pode ficar lá o tempo que for necessário. Assim não fica sozinha.
— Não quero dar trabalho.
— Por favor, Bia. Vou ligar para meu pai na hora do intervalo. Daqui você já vai direto para minha casa.
Minutos depois, mais calma, Beatriz já coordenava os trabalhos do grupo.
— Vou fazer o melhor que puder porque quero que no dia da apresentação minha mãe esteja na platéia. É um presente que quero dar a ela.
— Não se esqueçam de que nosso trabalho vai concorrer com todos os demais. Só vamos para a apresentação final se conseguirmos a melhor performance de todas as turmas — alertou Augusto.
— Nós vamos encenar a melhor peça que esta escola já viu — adiantou Marta. — Será nosso presente para a mãe da Bia.
— É isto mesmo, pessoal. Vamos entrar nesta para ganhar — disse Silvia que, até então, não havia se manifestado.
— Meu Deus! Vejam só quem está falando. Estou gostando minha amiga — disse Maria com um sorriso, enquanto se abraçava à amiga.
— Vejam bem o que temos que fazer — começou a dizer Bia. — Como sabemos, o Saci é um ser mitológico e que tem algumas características especiais. Mas, de todas elas, a que nos interessa para este trabalho são suas atitudes que, muitas vezes, não passam de brincadeiras, mas que trazem alguns problemas para as pessoas.
— Eu vi que em certos lugares do Brasil ele é considerado um ser maligno — adicionou Augusto.
— Isto mesmo — confirmou Beatriz. — Mas não acho que devemos ir por este caminho. Vamos pegar o lado mais humano dele. Assim a peça fica mais próxima das crianças que serão o nosso público se viermos a ganhar o festival.
— Também acho — concordou Marta.
— Eu já consegui o cachimbo e a carapuça vermelha que ele usa — adiantou Augusto. — E já estou treinando andar com uma perna só. Estou ficando craque neste negócio.
— Mas não precisa de muito treino não. Não se esqueça de que vai ficar sentado o tempo todo — lembrou Beatriz.
— Existem três tipos de Sacis: O Pererê, que é pretinho, o Trique, moreno e brincalhão e o Saçurá, que tem olhos vermelhos — comentou Augusto. — Por que temos que mostrar logo o negro?
— Porque este é o mais conhecido, ora — contra-argumentou Marta.
— Como sabemos, ele adora fazer pequenas travessuras, como esconder brinquedos, soltar animais dos currais, derramar sal nas cozinhas, fazer tranças nas crinas dos cavalos — adicionou Bia.
— Muitas destas brincadeiras devem trazer mesmo sérios problemas para as pessoas. E é exatamente por isto que vamos julgá-lo — completou Marta.
De repente, Silvia, com uma folha de papel nas mãos, disse:
— Vejam o que diz aqui: “dentro de todo redemoinho de vento existe um Saci. Ele não atravessa córregos nem riachos.” Como vamos encenar isto?
— Vamos ver o que é possível de levar para o palco. Em teatro, não conseguimos, muitas vezes, ser fiéis ao texto original. Vamos usar a nossa criatividade — sugeriu Beatriz.
— Outra coisa, voltou a dizer a menina. “Alguém perseguido por ele, deve jogar cordas com nós em seu caminho. Ele pára para desatar os nós e assim deixa que a pessoa fuja.”
— Esta parte é fácil — declarou Maria. — Corda eu tenho em casa.
— Gente, estamos nos esquecendo de uma coisa: não vamos encenar uma peça sobre o Saci Pererê e sim o seu julgamento — lembrou Bia.
— É mesmo — concordaram todos.
— Então podemos nos esquecer destes detalhes — avisou Maria.
— Eu sei que não tem nada a ver, mas agora fiquei curioso com uma coisa — disse o único menino do grupo.
— E o que é Augusto? — perguntou Marta.
— Em quase todas as lendas existe uma maneira de quebrar o encanto destes seres. O que é preciso fazer para se livrar de um pestinha como este?
— Aqui na pesquisa não diz nada sobre isto — tornou a dizer Sílvia. — O que diz aqui é o seguinte: “se alguém jogar dentro do redemoinho um rosário de mato bento ou uma peneira, pode capturá-lo, e, se conseguir sua carapuça, será recompensado com a realização de um desejo.”
— Vamos, então, recapitular o que já temos — disse Beatriz outra vez tomando o comando dos trabalhos. — O Augusto será o Saci, eu serei a promotora, a Marta a advogada de defesa, a Sílvia, para mim, fica melhor de juíza e a Maria será uma testemunha.
— E vamos ter apenas uma testemunha?! Não pode ser! — disse Marta. — Testemunhas são no mínimo duas: uma de acusação e outra de defesa.
— Não tínhamos pensado nisto — concordou Bia. — E agora?
— Como as duas testemunhas não aparecem simultaneamente... — respondeu Marta.
— Está insinuando que eu faça as duas testemunhas?
— E, por que não? Enquanto você troca de roupa a gente enrola o público com uma discussão entre a juíza e o advogado de defesa.
— Gostei da idéia — emendou Bia.
— Não sei se vou dar conta. É muito texto para decorar.
— Dá conta sim, ora. Temos mais de vinte dias até a apresentação — lembrou Beatriz.
Faltavam apenas dez minutos para o término da aula quando a coordenadora da escola se aproximou do grupo e pediu que Beatriz a acompanhasse. Ninguém fez qualquer comentário, mas puderam todos imaginar o que se passava. Entreolharam-se em silêncio. Minutos depois, veio um funcionário da escola buscar sua mochila na sala de aula. O homem entrou e saiu calado.
— Meu Deus, será... — tentou falar Marta.
Não houve, como anteriormente, nenhum comentário. A partir daquele momento, o silêncio imperou entre os componentes do grupo. Estavam todos apreensivos.
Foi a última vez que viram a colega naquela semana.
Bia só retornou à sala de aula na semana seguinte, já na quarta-feira. Chegou cabisbaixa, sentou-se como se estivesse em um ambiente onde não conhecia ninguém. Como todos já sabiam, a mãe da menina continuava internada em estado muito grave. Ninguém ali tinha informações precisas sobre o que se passava com dona Mônica. Era uma destas doenças raríssimas que muita gente sequer sabe o nome.
Beatriz estava visivelmente abatida. Curiosamente, todos queriam saber notícias sobre sua mãe, mas ninguém se arriscava. No entanto, sabiam que nenhuma tragédia havia se abatido sobre a colega nas últimas horas, caso contrário, ali ela não estaria.
O segundo horário era outra vez aula de Português. Era o momento para todos se interarem do que estava realmente se passando. A presença da colega em classe não significava, nem melhora, nem piora no estado de sua mãe.
Aquela primeira aula foi, sem dúvida alguma, a mais longa da existência daquela meninada.
Ao entrar, a professora Vera pediu licença para falar de algo muito sério. Aproximou-se de Bia, abraçou-a e falou do estado de saúde de sua mãe. Disse que, apesar de o estado de saúde da senhora Mônica estar estável, ainda inspirava cuidados e pediu que todos dessem as mãos e fizessem uma oração pelo seu restabelecimento. Imediatamente trinta e três vozes ecoaram pela sala de aula. Era como um coral afinado e muito bem ensaiado articulando com precisão cada palavra.
Ao final, Augusto pediu a palavra. Ninguém ousou interferir.
— Eu gostaria de dizer em meu nome e em nome de toda a classe da alegria de tê-la de volta ao nosso convívio, Beatriz. Saiba que você fez uma falta muito grande para todos nós. Pedi a Deus, todos os dias, pela sua mãe e acho que muita gente aqui deve ter feito o mesmo. Todos os dias, nos intervalos, nos reuníamos e orávamos para que sua mãe voltasse logo para casa. Isto ainda não aconteceu, mas, temos certeza, de que vai acontecer em breve.
Enquanto o menino falava, era possível ver as lágrimas descendo pelo rosto de Bia. Em um momento como aquele era impossível conter o choro.
— Dizem que só conhecemos os verdadeiros amigos nas horas de muita dificuldade — disse a menina enxugando as lágrimas. — Não sei o que dizer diante de tanto carinho.
— Enquanto esteve fora, demos seqüência ao trabalho que havíamos começado. Já decoramos nossas falas, já definimos o cenário. Usamos suas idéias, para variar. Estávamos torcendo para que você voltasse logo — disse Marta com um sorriso.
— Pois eu estou de volta e pronta para recomeçar. Minhas falas já estão todas gravadas.
— Estamos felizes mesmos com sua volta, Bia — disse do fundo da sala Alberto, um aluno com quem a menina raramente falava.
— Então — interferiu Vera —, ao trabalho. Há alguns grupos que estão um pouco atrasados, inclusive o de vocês, Bia. Precisam pensar no figurino e em alguns outros detalhes.
— Só temos mais três aulas para os ensaios — adiantou Maria. — Agora que está de volta, vamos ter que andar rápido com isto.
Em alguns minutos, estavam todos no pátio. Aos poucos, Bia foi se interando do que havia sido feito pelos colegas. Ajudou dar os retoques finais no texto, ouviu com atenção a argumentação que sua adversária usaria durante o julgamento.
— Achei que está ótimo assim. Vou ter que fazer algumas poucas adaptações em minha fala.
— Em um trabalho como este, o improviso, às vezes, tem uma importância muito grande — adicionou Maria. — Se o advogado ou o promotor esquecer alguma parte do texto, pode inventar, que não vai haver muito problema, acho. Basta ter presença de espírito. O público nunca vai saber, mesmo, o que foi ensaiado ou não.
Os dias que se seguiram foram mais que suficientes para a finalização das atividades do grupo. No último dia de aula da unidade, seriam feitas as apresentações. Uma comissão julgadora, composta por vários professores, pela diretora da escola e por um professor de teatro seriam os responsáveis pela seleção do melhor espetáculo. Cada peça deveria durar entre trinta e quarenta minutos. Qualquer grupo que excedesse este tempo perderia pontos.
Todos os aspectos possíveis seriam analisados, desde o figurino, o texto, até a performance dos atores.
O texto sobre o julgamento do Saci estava na ponta da língua e cada movimento prévia e devidamente ensaiado.
— Acho que não vai ter para ninguém — comentou Augusto antes de entrar em cena.
— Gostaria de ter esta sua confiança — disse Sílvia. — Estou muito nervosa. Não sei se vou conseguir.
— Esqueça o público e as pessoas que irão julgar a peça. Faça o que você fez nos ensaios que vai dar um show, minha amiga — falou Beatriz abraçando-se à colega.
— Mas eu sou a primeira a entrar. E se eu tropeçar em alguma coisa e cair?
— Em que você poderia tropeçar?
— Sei lá. Torcer um pé, então.
— Não vai acontecer nada disto. Vamos estar todos maravilhosos em cena. Não se esqueçam de que este é um espetáculo que daremos de presente à mãe de Bia daqui alguns dias. Mas, para isto, precisamos ser os melhores, lembrem-se — argumentou Marta.
— É agora! — exclamou Beatriz ao ver as cortinas se abrindo. — Boa sorte para todos.
Silvia entrou de forma triunfal. Vestida a caráter, ignorou o público, como havia sugerido a amiga, e sentou-se. Diante dela, já estava o réu. Augusto decidido, a não ser mais tarde, alvo de piadas dos colegas, entrou antes e se posicionou no lugar devido. Entrar pulando com um pé só era algo impraticável.
Silvia, ao vê-lo, acreditou que teria uma crise de risos. Augusto, vestido daquela forma e com o corpo todo pintado, era tudo que queria ver. E o melhor de tudo: sem quase nenhuma maneira de aparecer.
Na cabeça, o menino usava uma touca vermelha como determinava o texto. No entanto, o que mais lhe chamou a atenção e que quase fez com que ela colocasse tudo a perder com uma nova crise de risos, foi a cabeleira usada pelo colega. Parecia uma imensa moita de capim totalmente negra, coberta por uma lona de cor vermelha.
As demais colegas, ainda nos bastidores, ao perceberem a reação de Sílvia, desataram na risada.
— Pessoal, comportem-se. Deste jeito não vai dar certo — alertou Marta, a segunda a entrar em cena.
Um a um as personagens foram desfilando diante do público atencioso. Em pouco tempo, começaram a inquirir as testemunhas.
— Então, a senhora quer dizer que era comum encontrar a cozinha repleta de sal espalhado pelo chão? — indagou a promotora.
— Exatamente, senhora.
— E o que mais a senhora presenciou que poderia ser creditado ao Saci Pererê?
— Este sujeito é um diabinho, senhora. Várias vezes encontrei roupas espalhadas pela casa. Uma vez encontrei um rato morto dentro de uma panela de feijão. Uma coisa horrorosa!
— Protesto, meritíssima! — interferiu a advogada de defesa. — Um fato como este não pode jamais ser creditado ao meu cliente. Era uma casa de fazenda, onde a presença de ratos é muito natural.
Mais tarde.
— A senhora tem mais alguma pergunta a ser feita à testemunha? — procurou saber a juíza, dirigindo-se à promotora.
— A senhora informou que era comum os cavalos da fazenda aparecerem com as crinas todas embaraçadas pela manhã.
— Isto mesmo. Eram muito freqüentes coisas deste tipo.
— Quando a senhora diz: “coisas deste tipo”, a senhora está querendo dizer o quê?
— Era comum, pela manhã, também as vacas estarem em companhia dos bezerros.
— E isto, por certo, prejudicava a produção de leite, claro? Então, a senhora poderia afirmar que o Saci trazia prejuízos financeiros para os fazendeiros da região?
— Protesto, meritíssima! — exclamou a advogada de defesa. — Naquela época, não se produzia leite como se produz hoje em dia com o objetivo de vender. Portanto, não se pode falar em prejuízos financeiros.
De repente, movido por inquietude sem tamanho, o réu ergueu o braço. Certamente, Augusto imaginou que seria como em uma sala de aula onde um simples gesto daquele garantiria sua participação. Mas, a juíza não estava a fim de dar-lhe qualquer tipo de atenção, muito menos a palavra. Sílvia manteve-se, portanto, totalmente alheia à sua manifestação
Mas o rapazinho não estava disposto a sair dali sem uma participação efetiva. Continuou com o braço erguido. Instantes depois, certo de que se não tomasse alguma atitude, a peça chegaria ao final sem que ele dissesse nada, Augusto disparou:
— Gostaria de falar algo em minha defesa.
— Silêncio no tribunal — esbravejou a juíza.
— Mas eu quero falar! – voltou a insistir o menino.
— Senhor réu — disse Sílvia mantendo o tom ríspido da voz, — devo adverti-lo que sua participação sem a minha devida autorização pode lhe trazer conseqüências bastantes desagradáveis.
Nenhum dos integrantes da peça acreditara no que estava vendo e ouvindo. Aquela era mesmo a Sílvia que há tanto tempo conheciam? Falando com aquele desembaraço e aquela entonação? Bia e Marta se entreolharam e sorriram, discretamente para a colega. Bia fez com o dedo polegar o sinal de positivo e incentivou que ela continuasse.
Mas, aparentemente, aquilo era tudo que Augusto queria. Era uma deixa preciosa para que ele aparecesse como personagem ativo na apresentação.
— Meritíssima, a senhora vai me desculpar, mas estou neste momento dispensando os trabalhos de minha advogada. Acho que a defesa está sendo conduzida de forma inadequada e faço valer os meus direitos de dispensá-la neste momento.
— De que direito o senhor está falando?! — voltou à carga a juíza. — Ponha-se no seu lugar insignificante de réu e espere pela sentença. Caso contrário, terei que requerer força policial para fazer com que o senhor se cale. Aqui, quem determina as regras sou eu!
— Acha que a senhora me intimida com sua autoridade? Onde já se viu uma juíza se dirigir a um réu chamando-o de insignificante! Posso não ter uma perna, mas não sou meio homem, minha senhora! — gritava Augusto, agora saltitando pelo palco e soltando baforadas de fumaça de seu cachimbo no rosto de todos.
— Meu Deus! — disse baixinho Beatriz para a amiga Marta. — O que deu neste menino?
— Para lhe falar a verdade, algo me dizia que isso poderia acontecer. Ele aceitou muito fácil o papel de Saci. Já havia planejado tudo.
— Deixe que eu vou resolver isto já, quer ver — disse Bia dirigindo-se à juíza.
— Meritíssima, gostaria de pedir-lhe que autorize logo a força policial para que este delinqüente seja de fato calado e posto em seu devido lugar.
Silvia, sem saber o que fazer diante de uma situação daquelas, fez que sim com a cabeça. Foi o bastante para que dois outros colegas de outros grupos que já haviam se apresentado entrassem em cena. Imediatamente, Augusto foi dominado e levado de volta a sua cadeira. Mesmo assim, não se manteve calado. Continuava pleiteando o direito de despachar sua advogada.
— Tenho direitos!! Tenho direitos!! — estas foram suas últimas palavras antes que uma faixa de tecido retirada de um dos forros de uma das mesas lhe servisse de mordaça. Calado o réu e encerrado o espetáculo de Augusto o julgamento continuou.
Lá embaixo na platéia, o riso corria solto. Ninguém podia imaginar que tudo que no palco se passava não estava no script. Algumas pessoas da platéia riam sem parar.
Em menos de meia hora o veredicto:
— Senhores jurados — começou a falar Sílvia. — Chegaram a uma conclusão?
O corpo de jurados fora formado também com alunos de outros grupos, num ato de camaradagem dos colegas.
— Sim, meritíssima! Nós julgamos o réu culpado — declarou o representante dos jurados.
Da platéia veio um sonoro “Oh”.
Sílvia tomou nas mãos o papel que lhe fora entregue e leu a sentença: “condeno o réu Saci Pererê a brincadeiras forçadas para a eternidade.”
Nova onde de sonoros risos tomou conta de todo o ambiente.
Fecharam-se as cortinas e ouviu-se então uma salva de palmas de quase um minuto. Novamente as cortinas foram abertas e ali estavam no palco cinco pessoas vitoriosas. Mas dentre elas, uma merecia a atenção especial dos presentes.
Todos ali sabiam do drama vivido por Beatriz e de sua coragem em enfrentar os monstros que tanto a assombraram nas últimas semanas.
Enquanto os atores ainda recebiam o aplauso do público, a diretora da escola subiu ao palco. Imediatamente todos silenciaram. Ela não havia feito aquilo durante nenhuma das apresentações e aquela não seria a última. Portanto, não estava ali para o encerramento solene do festival sobre o folclore. O que queria dona Emanuela ali, naquele momento?
Fazendo uso de um microfone que lhe foi entregue, a diretora começou a falar. Primeiro cumprimentou os atores parabenizando-os. Depois se dirigiu a Beatriz.
— Sabemos que ainda temos dois grupos para se apresentarem, mas não poderia deixar para depois o que quero fazer. Gostaria de dizer a uma pessoa, que aqui se encontra, que temos um presente muito especial para ela neste momento.
Todos os atores se entreolharam, mas logo não tiveram dúvidas de que Emanuela estava se referindo a Bia.
— Temos aqui, na platéia, uma pessoa muito especial para esta menina. Mas vou dizendo logo que não foi fácil trazê-la até aqui. Foi preciso um veículo especial e uma autorização de um médico. Mas tudo, felizmente, correu às mil maravilhas.
Imediatamente Beatriz correu os olhos pela platéia e procurou pela mãe, mas não a encontrou.
— Não vai vê-la daqui, minha querida, pois ela está em um local especial. Mas vamos trazê-la até aqui para que receba dela o abraço e o beijo que você merece.
A um sinal da diretora, dois homens vestidos de branco empunharam uma maca nos fundos do auditório e subiram com a senhora Mônica ao palco.
A mãe de Bia foi conduzida para junto da menina que, àquela hora, chorava copiosamente. Com dificuldades, a mulher estendeu a mão para tocar o rosto de Beatriz.
Não houve forças para um abraço como anunciara a diretora da escola. Mas, neste momento, a platéia voltou a aplaudir. Imediatamente todos se puseram de pé e, mais uma vez, um ruído de palmas ecoou pelo auditório.
Beatriz, com ternura, inclinou-se e beijou a mãe na testa. Viu nos olhos de Mônica um brilho que há muito não via. Era como se a vida estivesse voltando àquele corpo que quase não resistira a uma prolongada enfermidade.
Quase meia hora mais tarde, o penúltimo grupo entrou no palco. Fizeram uma apresentação soberba sobre a lenda do Boto Cor-de-Rosa. Foi um musical multicolorido que empolgou, desde o primeiro instante, a platéia. Imediatamente todos os demais grupos se convenceram de destroná-los seria impossível. E foi, exatamente isto, que aconteceu: no final do ano, o grupo que mostrou de forma criativa e impecavelmente bem ensaiada a mais famosa lenda da Amazônia, reapresentou-se.
Na platéia, estavam quase todos os alunos da escola e muitas famílias. Dentre elas estava a de Beatriz — seu pai, sua mãe, ela e o irmãozinho Romero.