Curupira
4 de junho de 2016
Negrinho do pastoreio
4 de junho de 2016
Curupira
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Negrinho do pastoreio
4 de junho de 2016
Para falar a verdade, jamais havia ido a uma fazenda. O que conhecia, deste mundo, tinha visto pela televisão, através de algumas novelas ou de filme americanos. Para mim, aquilo era um universo de fantasia, definitivamente, não existia de verdade. Nunca imaginei um mundo sem energia elétrica, sem computadores, sem televisão.
Meu avô, que sempre vinha à cidade nos visitar, passava horas contando histórias de sua época de menino, de suas aventuras em companhia dos irmãos e primos. Curiosamente, como bom narrador que era, sempre prendia a minha atenção e de alguns amigos que, com freqüência, estavam lá por casa nos finais de semana. Deixávamos de jogar vídeo-game para ouvi-lo e ao seu lado passávamos horas a fio escutando suas histórias. Falava com uma convicção que era como se estivéssemos mesmo vivendo cada uma daquelas aventuras. Vovô Ronaldo sempre tinha algo diferente para contar. Acho que muita coisa ele mesmo inventava, pois eu achava impossível alguém ter vivido tantas peripécias.
O curioso é que nos transportava para o seu mundo, o mundo da fazenda, um mundo tão diferente de tudo que conhecíamos. Ao ouvi-lo era como se estivéssemos diante de um livro de aventuras, onde o narrador nos guia para onde quer, sem termos direito sequer de questionar o nosso destino. Ficávamos ligados em cada palavra que dizia, em cada gesto que fazia. E assim íamos mergulhando naquele universo singular, naquele mundo que ele mesmo fazia questão de trazer da forma mais agradável e curiosa para nós, pobres meninos da cidade grande.
Lembro-me muito bem de sua última visita a minha casa. Foi em meu aniversário de doze anos. Naquele dia, não houve como escutar-lhe as histórias, pois era dia de festa. Além disso, meu pai me chamou e disse que ele não estava muito bem de saúde. Que viera à cidade, exclusivamente, para a minha festa, mas que ele precisava de um pouco de repouso. Não era nada grave, mas melhor seria se nós o poupássemos de muita conversa.
— Mas ele parece tão bem — comentei.
— Parece, mas não está — foi o que disse papai.
— E ele pode morrer? — perguntei sem saber a seriedade daquele questionamento.
— Isto é coisa que se pergunte, Rodrigo? Não é mesmo nada grave, mas seu avô já é um senhor de idade. Não tem mais a disposição de uma pessoa jovem.
— Eu o achei ótimo — voltei a comentar.
— Só aparentemente. Você sabe, seu avô sempre foi uma pessoa muito forte, mas a idade, meu filho, é impiedosa. Afinal são mais de oitenta anos.
Realmente, naquela noite, ele foi para a cama mais cedo que era o seu costume. Muitos de meus amigos haviam ido a minha festa de aniversário, para ouvi-lo com suas fantásticas aventuras. Foi uma frustração muito grande para muita gente. É que sua fama de contador de histórias corria de boca em boca pela escola onde estudava. Até minha professora sugeriu que ele fosse à minha sala de aulas para contar uma de suas peripécias de menino. É que meu avô narrava sempre em primeira pessoa. Jamais nos trouxe uma narrativa em que ele não fosse um dos personagens.
Mas, talvez pela sua simplicidade, nunca fora personagem principal de nenhuma delas. Sempre era alguém menor, uma daquelas pessoas que estiveram presentes, no entanto, não participava diretamente dos fatos. Diríamos que sempre fora um observador atento dos fatos. Bem que ele podia ser alguém que desvendara mistérios, que enfrentara perigos diversos e acabara salvando gente, mas não. Preferia, em sua grandeza de homem simples, de uma pessoa do povo, apenas observar. Observar e contar com uma riqueza de detalhes que nos impressionava.
Naquela noite, em sua última visita a minha casa, estava calado. E aquilo me deixou muito preocupado. Ao final da festa, antes mesmo que os últimos convidados tivessem saído, fui ao seu quarto e sentei-me ao lado de sua cama. Ali estava uma pessoa que aprendi a amar desde que havia nascido.
Meu avô dormia com uma serenidade impressionante. Mal se percebia a sua respiração. Tive, de repente, a impressão de que ele havia partido. Senti vontade de tocar-lhe os cabelos grisalhos, mas me contive. Uma sensação profunda de perda tomou conta de mim e não me contive; acabei ali mesmo chorando.
Vi seus olhos se abrindo lentamente e me olhando com uma ternura indescritível. Nunca serei capaz de contar o que senti naquele momento.
— Você está chorando?! — perguntou ele com sua voz mansa, provavelmente, sem entender o que estava se passando comigo.
Não disse nada. Apenas enxuguei com a fralda da camisa as lágrimas.
— Eu estou bem. Vá se divertir — aconselhou vovô.
Deixei o quarto sem dizer nada. Mas tenho certeza de que ele sabia o que eu havia ido fazer ali e o motivo de meu choro.
Era final do mês de junho e as férias escolares se aproximavam. Todos os anos, nesta época, eu passava alguns dias na casa de uma tia, no interior. Depois voltava à capital e o resto dos dias era uma chatice sem tamanho. Para dizer a verdade, quase todos os anos eu torcia para que as aulas recomeçassem logo, tamanho era o meu tédio.
No entanto, naquele ano, as coisas aconteceram de forma diferente. Meu pai não disse o porquê mas resolveu que deveríamos passar alguns dias na fazenda de vovô Ronaldo. Desde o início entendi o motivo: vovô estava mesmo doente.
A princípio, a idéia me soou meio desagradável, pois iria me ausentar de meu mundo. É muito estranho como não gostamos de mudanças, não? Todos os anos ia para a casa de minha tia Rita, ali ficava alguns dias e nada de novo acontecia. Ficávamos, boa parte de nosso tempo, diante da televisão, jogávamos vídeo-game e assim nossos dias eram consumidos com as mesmas atividades que tinha quando estava em casa.
Em dois ou três dias, aquela rotina tornava-se insuportável e queria voltar logo para casa. Lá havia meu primo Tiago que era um menino estranho. Era uma daquelas pessoas que sempre precisa estar em uma situação de destaque. Nos jogos, jamais admitia perder. Se perdia, inventava mil desculpas, modificava as regras e acabava sempre se dando bem. Bom, pelo menos era isto que ele imaginava. Definitivamente, era uma pessoa insuportável.
Desta vez, iria para a fazenda. Não estava gostando da idéia, mas a simples companhia de meu avô já era o suficiente para me deixar convencido de que melhor ali do que na casa de tia Rita. No dia anterior à nossa partida, ele me ligou dizendo que havia comprado um cavalo e que aquele animal seria o meu presente de aniversário. Nunca imaginei que um dia fosse andar a cavalo. Sonhava com motos velozes e com carros de corrida. Cavalo?! A quantos quilômetros por hora cavalgaria um cavalo?
Eu, naquela época, tinha um colega de escola chamado Paulo Almeida. O Paulo era uma daquelas pessoas que está com a gente sempre que precisamos. O sujeito parecia que lia meus pensamentos e eu os dele. Quando eu lhe falava sobre algo que eu gostaria de fazer, o menino havia até pensado em como agir pra conseguir o que eu queria. Acho que todos nós deveríamos ter amigos assim. Eu o conheci ainda nos primeiros anos de escola e fomos colegas até a oitava série. A partir daí, ele se mudou e perdemos o contato.
Quando o Paulo ficou sabendo que eu iria passar uns dias na fazenda do vovô Ronaldo, induziu-me a convidá-lo. Depois de uma breve conversa entre nossos pais, ficou acertado que o rapazinho iria conosco. Achei a idéia muito interessante, pois ter por perto a companhia daquele amigo seria o máximo.
Partimos numa segunda-feira ainda de madrugada. Acho que nunca havia me levantado da cama tão cedo. O sol ainda nem dava mostras de que iria nascer. No meio da escuridão da madrugada, seguimos caminho.
Mal entramos no carro e veio aquela pergunta infalível e que hoje sei que irrita profundamente os pais em uma situação daquelas:
— Quanto tempo até a fazenda? — perguntei.
Menos de uma hora depois da partida, o dia deu mostras de que seria ensolarado. Você já teve a oportunidade de ver o dia nascendo? Meu Deus, como é bonito ver o sol sair por detrás das montanhas, lá naquele lugar onde a gente fica imaginando que nem existe de tão belo que é! Nas cidades onde moramos, poucos são os que têm este privilégio. É, sem dúvidas, o maior espetáculo da terra! E o interessante é que ele está ali, se repetindo todos os dias a bilhões de anos para quem quiser apreciar.
À medida que o carro avançava, mantinha os olhos bem abertos, pois não queria perder um momento sequer do nascimento do dia. Dos confins do mundo, no horizonte longínquo, onde a vista não alcança mais nada além das curvas das serras e o céu tingido de um vermelho da cor de sangue, o dia vinha vindo.
Meu pai, de repente, parou o carro. Fazia um frio que nunca tinha sentido. Era um frio que também vinha de muito distante. O frio que, às vezes, sentimos, quando estamos dentro de nossas casas ou em nossas salas de aula, vem de uma janela aberta, de um aparelho de ar condicionado. Ali não. O frio vinha das montanhas distantes, dos vales à nossa frente, do mundo que estava escancarado diante de nós.
— Isto tudo, meninos, só pode ser obra de Deus — comentou o meu pai depois de alguns minutos em total silêncio.
Não disse nada. Em um momento como aquele, o silêncio não era para ser quebrado com um comentário qualquer.
Tenho ainda, nitidamente na memória, aquele cenário espetacular.
Chegamos à fazenda por volta da uma hora da tarde. A fome estava corroendo o meu estômago de uma forma que nunca tinha visto.
Vovô veio nos receber ainda na porteira do curral. Curiosamente caminhava sem qualquer dificuldade, numa demonstração clara que sua saúde estava ótima.
Junto com ele veio um cachorro enorme. Meu avô havia me falado muito dele. Seu nome era Plutão e era um pastor-alemão, quase preto. Não sei bem o motivo, mas logo o animal estava lambendo as minhas mãos e aceitando os meus afagos.
De vovô Ronaldo recebi um abraço como há muito não recebia.
Dali, fomos diretamente para a sala de jantar.
À mesa, durante a refeição, estava eu, meu amigo Paulo, meu pai, meu avô e dois outros homens. O primeiro, um sujeito de uns quarenta anos, meu vovô apresentou como sendo seu braço direito na fazenda, uma espécie de capataz. Seu nome era Manoel e não sei por que, mas estava sempre pronto para um sorriso. O outro era o Douglas, um rapazinho de pouco mais de dezoito anos, miúdo, quase do meu tamanho. Muito tímido, não pronunciou uma palavra sequer durante todo o almoço. Era o filho de uma vizinha, dona Cândida. Douglas prestava alguns serviços na fazenda quando estava de férias da escola. Estranhei, pois férias, para mim, era tempo de divertimento; para aquele rapaz era época de trabalho.
Na verdade, meu avô o havia contratado para nos acompanhar pela fazenda e para arrumar para a gente algo com que passássemos o tempo.
Durante a refeição, surgiram algumas conversas sobre como andavam as coisas por lá, sobre como iam os negócios. Os adultos falavam de coisas das quais não entendemos nada e por isto pouco faz sentido para nós, gente essencialmente urbana. Papai indagou sobre o gado, sobre as lavouras e mais um monte de outras coisas. Meu avô respondia a todas as perguntas com uma animação invejável. Era uma pessoa completamente diferente daquele homem que estivera em minha casa dias atrás.
Meu pai sempre dizia que o lugar de meu avô era mesmo na fazenda. Aquele era o seu mundo e só ali ele se sentia bem.
Menos de meia hora depois de sentarmos à mesa, havíamos terminado a refeição. Foi quando vi pela primeira vez Maria Clara. Ela veio ajudar a mãe retirar a mesa e servir a sobremesa.
Maria era uma menina, pelo que calculei, de minha idade. Era pequena, morena e tinha os cabelos mais lindos que já vi até hoje. Sempre de cabeça baixa, cumprimentou os presentes com uma voz que mal se pôde ouvir.
— Como está crescida esta menina — comentou meu pai.
Se ela havia crescido muito, imaginei logo como ela seria quando pequena.
— Com quantos anos está sua menina, Isabel? — indagou meu avô à cozinheira.
— Doze, seu Ronaldo — respondeu a mulher enquanto servia um doce de abóbora em uma compoteira de cristal.
Doze! Acertei na mosca.
— Que menina linda! — comentou Paulo com um sorriso ao ver Isabel se afastando.
— Não deu para ver o seu rosto direito — falei baixinho quase ao ouvido de meu amigo.
— Lá na escola. não tem ninguém tão bonita assim — voltou a dizer Paulo.
— Bem, senhores, acho que podemos deixar a mesa — sugeriu vovô Ronaldo pondo-se de pé.
Nós o acompanhamos até a varanda da casa.
A sede da fazenda era uma casa de dois pavimentos, construída, segundo seu dono. há quase cem anos. Seu construtor fora meu bisavô, um homem de muita barba e um bigode enorme que estava estampado em uma das paredes da sala de estar.
Havia sobre este homem uma história meio estranha e que nunca fiquei sabendo ao certo qual era. Ouvi meu avô, certa vez, comentar com meu pai sobre isto. O que sei é que diziam que ele havia sido morto por um empregado da fazenda e seu corpo jogado num rio próximo. Mas seu corpo jamais fora encontrado.
Na verdade, havia mesmo um mistério sobre a vida e o destino trágico daquele meu antepassado. O tal empregado, que teria dado cabo da vida de meu bisavô, para muita gente, nem existira de fato.
E assim, de geração em geração, as histórias sobre a vida e a morte do velho João Nunes, iam tomando formas diferentes. Meu tio Leandro, por exemplo, contava umas bem interessantes. Dizia que ele era um homem destemido e que nunca fugira de perigo algum. Mas acho que meu tio, assim como meu avô Ronaldo, era um bom inventor de histórias.
Certa vez, contou uma em que meu bisavô desafiou a mula sem cabeça e acabou vencendo.
— E este negócio de mula sem cabeça existe mesmo, tio? — Perguntei impressionado que estava com a coragem daquele homem.
— Meu sobrinho, isto eu não posso dizer com certeza, porque eu nunca vi. Aliás, eu nunca vi alguém que a tivesse visto. Mas o que não falta são casos sobre ela — disse meu tio Leandro com um sorriso. — Claro que aqui na cidade não vai aparecer um monstro destes, né?
— Como assim?
— Ora, mula sem cabeça é coisa lá dos matos. Só aparece para as pessoas simples que moram no sertão. Aqui não espere que ela vá aparecer saindo de uma loja do shopping.
O interessante é que fiquei com aquela história de mula sem cabeça na memória por um bom tempo. Cheguei a falar até para uma professora quando estava na segunda série. Ela me falou que aquilo era uma lenda e que lendas eram histórias inventadas pelo povo, sem nenhuma base em fatos reais. Pesquisei sobre esta lenda em livros e na internet. O que encontrei foram alguns textos muito simples. Nenhum deles tinha muita preocupação em detalhar as coisas. Acho que as lendas são eternas exatamente por isto. Nunca os textos são muito claros. Aliás, as próprias histórias são meio misteriosas. Passam, de geração em geração, de boca em boca e, ao longo dos tempos, vão perdendo partes e a elas vão sendo adicionadas outras. Onde está a verdade? E existe verdade quando se trata de lendas?
Mas não no caso de meu tio. Ele falava com tamanha riqueza de detalhes que fiquei em dúvida por um bom tempo. Não acreditava que tio Leandro tivesse tanta habilidade para inventar coisas. No entanto, às vezes, lemos algumas histórias tão bem contadas que acreditamos que tudo é verdade, não é mesmo? Mas meu tio não era um escritor. Muita coisa do que ele falava deveria ser mesmo verdade. Não acredito que ele inventasse tudo aquilo. Se fosse o meu avô Ronaldo, aí sim.
— Douglas, quero que vá selar os cavalos para darem um passeio por aí. Preciso falar aqui umas coisas com meu filho. Leve os meninos até o rio — disse meu avô.
— Mas eu nunca andei a cavalo! — argumentei.
— Nem eu — adicionou Paulo.
— Isto se aprende rápido — disse o dono da fazenda. — Os cavalos são todos muito mansos. E se cair, monta-se de novo, ora — riu ele.
O simples pensamento de que eu poderia desabar do lombo de um cavalo me deixava estarrecido. Uma queda de uma altura daquelas poderia deixar marcas profundas.
Em minutos, os cavalos estavam preparados e já a nossa espera. O animal que meu avô havia me comprado era um cavalo preto de pêlos lustrosos e crina cortada rente ao pescoço. Sempre achei os cavalos os animais mais belos do mundo. E aquele não fugia à regra. Era belíssimo.
Com a ajuda de Douglas e de meu pai, montei-me. Lá de cima, calculei a queda que, não tinha dúvidas, mais cedo ou mais tarde, aconteceria.
— Coloque os pés nos estribos, firme-se na sela e deixe que o cavalo o conduza — aconselhou meu avô.
Em minutos, estávamos cavalgando. Para quem era apaixonado por carros de corridas e motos, aquele meio de transporte era uma besteira sem tamanho. No entanto, percebi logo, era a mais fantástica experiência de minha vida, apesar de o animal seguir a passos de tartaruga. Mas me sentia como se fosse um guerreiro montado em seu cavalo indo em direção a uma grande batalha medieval. Faltava-me apenas uma lança e um inimigo à altura.
Inimigo?! Um dragão talvez. Como estava tenso, acho que bastava uma lagartixa cruzando a estrada, um simples refugo do cavalo para que eu fosse ao chão. Apertei, instintivamente, as pernas na barriga do animal, como uma forma de evitar qualquer imprevisto. E foi isto que fez com que o cavalo começasse a trotar. Tive vontade de gritar para que Douglas impedisse que a montaria avançasse tão rápido. Mas não o fiz. Tive vergonha de passar por uma pessoa medrosa e aceitei, com o coração na mão, o desafio.
Muito mais simples do que eu imaginava. Imediatamente o rapaz emparelhou seu cavalo ao meu e seguimos caminho. Esteve ali, por alguns minutos, como um fiel guardião. Eu sabia que se me desequilibrasse, ele não teria dificuldades em me ajudar a continuar no lombo do cavalo. No entanto, curiosamente, isto não foi necessário. A cada passo, sentia-me mais seguro e confortável. Atrás vinha Paulo demonstrando já ter conhecimento daquele tipo e situação. Em nenhum momento mostrou-se inseguro ou deixou transparecer algum receio.
— Você já havia andado a cavalo antes, né? — indaguei.
— Estava brincando quando disse que não sabia montar. Vou sempre ao sítio de um amigo de meu pai. Lá tem uns cavalos.
— Gostaria de galopar? — procurou saber o rapaz que nos acompanhava.
— De jeito nenhum. Se este bicho começar a correr vou cair — argumentei.
— Eu topo! — gritou Paulo forçando a montaria.
Em instantes, os dois cavalos se afastaram de mim a galope. Iam, estrada afora, levantando uma verdadeira nuvem de poeira. Pela primeira vez em minha vida, senti inveja de alguém. Meu amigo Paulo era um exímio cavaleiro e eu ia a passos lentos, arrastando-me pelo caminho.
O melhor, quando não se tem segurança de alguma coisa, é nos precaver. Mantinha as rédeas do cavalo sob controle, apesar de que o cavalo tentava a todo custo acompanhar o ritmo dos demais. Em minutos, os dois cavaleiros estavam fora do raio de minha visão. A princípio, aquilo não me preocupou. Continuei na mesma velocidade que vinha a passos lentos.
Passaram-se cerca de dez minutos mais ou menos. De um momento para outro, curiosamente, a poeira deixada pelos cascos das montarias desapareceu por completo. Por certo, haviam deixada a estrada e se enveredado pelo mato à margem da estrada. Procurei de um lado e outro na tentativa de encontrá-los, mas minha busca foi em vão.
Detive o cavalo e chamei por eles. Não houve qualquer resposta. De repente, me vi sozinho naquele mundo deserto.
Voltei a chamá-los, mas era como se eles simplesmente houvessem desaparecido como num passe de mágica. À minha volta, o que podia ser ouvido eram apenas o canto característico das cigarras e o piado de um pássaro em uma árvore próxima. Pensei em apear do cavalo, no entanto, tive receio de que não conseguisse montar quando precisasse.
Lá em cima, o sol estava já dando mostras de que não tardaria em desabar em direção ao horizonte. A tarde corria acelerada rumo à noite. Meu Deus! Onde haviam se metido meus dois companheiros de passeio? O que eu poderia fazer em um momento como aquele? Nada. Cheguei logo à conclusão de que o melhor a ser feito era de fato esperar pelo retorno de Douglas e Paulo.
O cavalo dava mostras de que aquela parada lhe causava certa impaciência. Queria, a custo, continuar a cavalgada, e era preciso a cada instante puxar-lhes as rédeas para que não continuasse a andar. Mas a inquietude do animal era nada se comparada à minha. Alguns minutos depois daquela parada obrigatória, já estava angustiado com o que estava acontecendo.
Voltei a vasculhar com os olhos o mato à beira da estrada e nenhum sinal deles. Percebi, então, que a insistência do cavalo em continuar a caminhada talvez tivesse lógica. Dizem que os animais têm um faro aguçado. Por certo, ele saberia para onde seguir. Estava sentido o cheiro dos outros cavalos, não havia dúvidas. Afrouxei as rédeas e permiti que ele continuasse estrada afora. E foi o que ele fez.
Começou a passos lentos, mas logo passou a um trote.
Menos de um quilômetro adiante, surgiu o primeiro obstáculo: depois de uma curva fechada, a estrada se dividia em duas. Era uma encruzilhada. Que destino tomar a partir daquele ponto? Como eu iria decidir se nada conhecia daquele mundo? Mais uma vez deixei que o cavalo decidisse. E foi isto mesmo que ele fez. Não teve dúvida sobre o caminho a tomar. Enveredou-se por uma estradinha à direita e pôs-se a subir em direção um uma pequena aglomeração de árvores.
Era uma subida íngreme, tanto que imaginei que iria cair da sela, tamanha a inclinação do terreno.
De repente, o animal deteve-se como se eu tivesse ordenado a sua parada. Tentei forçar a marcha, mas não houve jeito. O cavalo havia empacado. Todos os artifícios, que tinha a minha disposição, foram usados para fazê-lo ir adiante, mas não houve jeito.
Corri os olhos à minha volta e grande foi a minha surpresa quando vi, a poucos metros da estrada, uma enorme cruz de madeira. À sua volta, uma considerável quantidade de capim e mato mostrava que as visitas a ela eram raras ou quase nenhuma há muito tempo. O que significava aquilo ali? Um simples local de orações daquela gente simples do interior ou o local de uma tragédia ocorrida no passado? É comum fincar uma cruz no local onde alguém tenha morrido.
Aquele símbolo do sacrifício de Jesus Cristo deveria estar mesmo ali há anos, pois a madeira estava nitidamente enegrecida pelo tempo.
Apesar de estar me sentido desconfortável diante daquilo, resolvi me aproximar. Forcei outra vez a montaria, mas não obtive resposta. O cavalo continuava parado, imóvel, como se estivesse grudado no chão. Nem a cabeça ele movia.
Apeie, mas não deixei as rédeas soltas. Tive medo de que o cavalo se afastasse dali e me deixasse ainda mais isolado do mundo. Não tinha sequer noção de onde me encontrava e se ficasse a pé, a situação ficaria ainda muito pior.
Dei alguns passos em direção à cruz. Curiosamente o cavalo acompanhou-me. Debaixo dela, me senti um ser quase insignificante, tamanha era a sua altura. Olhei para cima e encontrei o céu já escurecendo. Era preciso voltar. Mas para onde deveria ir? Estava sozinho e sem referências de onde me encontrava.
Não deveria ter permitido que o cavalo me conduzisse. Havia abandonado a estrada principal e me enveredado por aquele caminho. Meus amigos se já estivessem a minha procura, por certo, não viriam por ali. Se haviam feito uma brincadeira comigo, voltariam pelo mesmo caminho por onde estávamos indo. Ali, jamais iriam parar.
Era preciso voltar. Mas uma curiosidade, que nem eu mesmo conhecia, tomou conta de mim e procurei uma referência sobre aquela cruz. Com o pé, procurei afastar o capim que encobria o terreno onde ela estava enterrada. Na primeira tentativa descobri um pedaço de mármore de cerca de cinqüenta centímetros quadrados.
Tentei retirá-lo de onde estava, mas não foi possível. Abaixei-me e logo percebi que nele havia escrito alguma coisa. No entanto, a terra o havia encoberto quase por completo. Com a ajuda de um pequeno pedaço de madeira, limpei-o e pude ler, sem nenhuma dificuldade, o que estava ali escrito.
“Aqui, aos onze dias do mês de agosto de 1924, foi morto o coronel João Nunes de Oliveira, senhor destas terras. Morreu, vitima da ignorância de outro homem: seu agregado Antônio Souza. Esta é uma homenagem de sua família. Saudades eternas.”
Ao terminar de ler aquilo, senti um frio percorrer-me a espinha. Aquele era o local onde meu bisavô fora morto. Então, pelo menos, parte da história que fiquei sabendo era verdade. Ele havia mesmo sido morto por um empregado da fazenda. Mas quantos sabiam daquela placa de pedra com aqueles dizeres? Talvez ninguém. Nem meu avô talvez.
De repente, um medo sem precedentes tomou conta de mim. Segundo a lenda da mula sem cabeça, ela sempre aparecia diante de uma cruz de madeira, e sempre à noite. Aos poucos toda a sua história me veio à mente. Cada palavra que havia lido nos livros e em outras fontes de pesquisas veio de forma estranha, uma atrás da outra, até formar o texto como um todo.
Diz a lenda, que a mula sem cabeça é uma mulher que se envolvera com um padre e dele gostou muito. Tiveram um romance e por isto ela acabou amaldiçoada. Ela sempre aparece nas encruzilhadas nas passagens de quinta para sexta-feira. Meia noite é, portanto, o momento em que ela sai pelo mundo aterrorizando as gentes simples do interior.
A partir daí ela percorre sete povoados de forma incansável, buscando sempre os olhos, as unhas e os dedos de quem ela encontra. Estas infelizes pessoas têm estas partes do corpo arrancadas. É uma tristeza só e não há como dela escapar, pois esta besta corre como uma mula de verdade.
Todos que já a viram ou tiveram a infelicidade de cruzar com ela, pelos caminhos do sertão, são unânimes em afirmar que ela aparece como um animal inteiro e que, de suas ventas e boca, são lançadas imensas labaredas. Muitos pastos são incendiados em conseqüência disto. Muitos incêndios devem ocorrer por causa disto.
Nas noites de total escuridão, este demônio sai pelas estradas e de longe é possível ouvir o seu galope incansável. De vez em quando, se pode também ouvir os seus relinchos desconcertantes. Mas não raras são, às vezes, em que esta besta chora como uma pessoa comum. Talvez esta seja uma maneira de mostrar que precisa de ajuda e que quer voltar a ser gente outra vez. Pobre infeliz!
As pessoas que com ela cruzam pelos caminhos precisam deitar de bruços para esconder dela suas unhas, dentes, dedos e olhos. Só desta forma não são atacadas. Assim devem permanecer por vários minutos.
Em sua boca e focinho há uma armadura de ferro que lhe serve de freio. Se alguém, de muita coragem, conseguir se bater com ela e retirar-lhe os freios da boca, o encanto será desfeito.
E foi isto que meu tio Leandro havia me dito que acorrera com meu bisavô João Nunes. Ele, com sua coragem desmedida, havia enfrentado a fera e livrado para sempre a pobre mulher daquela maldição que a acompanhava há séculos.
Mas até que ponto tudo aquilo era verdade? Ou nada era verdade?
Não importava. Não naquele momento em que estava ali ao pé daquela cruz.
Não entendia, ao certo, o que se passava comigo, mas um misto de medo e aflição tomou conta de mim. Era preciso voltar para a estrada, se quisesse reencontrar meus dois companheiros, contudo, não tinha forças para nada. Era como se uma força poderosa me prendesse àquele lugar.
Aos poucos, vi a noite chegando. Há quanto tempo estava ali? Impossível sequer calcular. Vi as primeiras estrelas surgirem brilhantes no céu escuro. Ao meu lado, estava o cavalo tranqüilo como se nada estivesse acontecendo. De repente, comecei a imaginar que ele tinha sido o responsável por eu estar ali. O cavalo havia me levado até ali sem que eu desse conta do que estava acontecendo.
Seria ele a besta da qual tinha lido tanto? Estaria ele apenas aguardando o momento certo para colocar em prática toda a sua ferocidade?
Em poucos minutos, a noite caiu pesada sobre aquele mundo de silêncio quase total. Deitei-me ao pé da cruz e fixei os olhos no céu, já, àquela hora, repleto de estrelas. Não entendia o que se passava comigo, pois depois de alguns minutos o medo que tanto me atormentava, simplesmente havia desaparecido.
Curiosamente me sentia confortável onde estava.
Lentamente a noite avançava e me colocava mais e mais perto do momento quando a tal besta aparecia. Mas que dia da semana era aquele? Ela sempre aparecia de quinta para sexta, me lembrava bem.
Fechei os olhos e mergulhei na escuridão ainda maior do mundo à minha volta. O único som que ouvia, com nitidez, era o balançar contínuo do freio do cavalo ainda parado ao meu lado.
Minutos depois, aos poucos, percebi que o sono tomava conta de mim. Tentei resistir, mas fui incapaz de evitá-lo. Em pouco tempo, foi dominado e acho que dormi profundamente por algumas horas. Foi um sono agitado e entrecortado por uma série de pequenos sonhos. Em um deles, assisti à luta ferrenha de meu bisavô contra a fera em forma de besta. A princípio, acreditei que João Nunes fosse massacrado pela mula sem cabeça. Entretanto, grande foi a minha surpresa quando o vi exibindo o freio que fora retirado de sua boca.
Só acordei com um relincho vindo de longe. De um só pulo pus-me de pé. A seguir ouvi uma série de sons característicos dos cascos de cavalos.
Meu Deus! Chegara o momento. Então meu bisavô não conseguira a façanha de desencantar a mula sem cabeça. Ela estava se aproximando e eu seria sua próxima vitima.
Procurei pelo meu cavalo, mas ali por perto ele não se encontrava. Entrei literalmente em pânico. Estava totalmente consciente do perigo que corria, mas nada poderia ser feito para evitar aquele encontro.
De repente, ali de perto, veio um outro relincho. Não tive dúvidas de que era minha montaria que dava sinais de vida. Agora de pé, avistei meu cavalo do outro lado da estrada. Aos poucos, o tropel, ouvido há poucos segundos, se apresentava muito mais próximo. Não tive dúvidas de que vinha em minha direção. Chegar até ali era apenas uma questão de tempo. Segundos, talvez.
Não havia como evitar o encontro. Imediatamente atirei-me no chão de bruços, procurando esconder as mãos, os olhos e o rosto. Lembrava, nitidamente, das informações de como escapar de seu feroz ataque. Permaneci imóvel por alguns minutos apenas aguardando a chegada da besta. Já era possível ouvir o som claro de seus cascos no chão batido da estrada e, pelo visto, vinha em disparada.
Mais uma vez, ouvi o relincho de meu cavalo ali perto, mostrando certa inquietude.
Enterrei o rosto no capim ao pé da cruz e ocultei as mãos por debaixo de meu próprio corpo. Além disto, agucei os ouvidos e percebi a aproximação da besta. Vinha mesmo a galope estrada acima.
Entretanto, sem mais nem menos, o barulho dos cascos do animal cessou por completo a alguns metros do local onde eu me encontrava. Um silêncio inquietador se fez então de um momento para outro. Pensei em erguer os olhos para ver o que se passava, mas não tive coragem. Era um risco que eu não poderia nem queria correr, claro.
Mas aquele estado de coisas não demorou muito. Uma voz conhecida varou a quietude da noite e chegou até meus ouvidos.
No entanto, não respondi ao primeiro chamado. Tive medo de que fosse a fera imitando a voz de meu pai. Em seguida, outras vozes foram ouvidas. Reconheci nitidamente a de Douglas e de meu amigo Paulo.
— Estou aqui! — anunciei pondo-me de pé junto à cruz.
— Jesus Cristo, meu filho. Onde se meteu durante todo este tempo? — indagou meu pai descendo de sua montaria e correndo em minha direção.
Foi um longo abraço.
Ao longo do caminho de volta, fiquei sabendo o motivo de eu ter me distanciado de Paulo e Douglas. A princípio, resolveram fazer realmente uma simples brincadeira comigo, mas Paulo não se sentiu bem. Temeroso de que meu amigo piorasse, o rapaz resolveu tomar um outro caminho e levá-lo para casa o mais rápido possível. Quando retornou, mais de uma hora mais tarde, já não me encontrou. Um simples desacerto e uma noite que vai ficar para sempre em minha memória.
Afinal, acreditei realmente que viveria a mesma situação vivida por meu bisavô, quase um século antes. Mas tudo, felizmente, não passou de um pesadelo apenas.

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